TRAVESSIA
Gustavo Werneck (textos), Alexandre Guzanshe (fotos) e Fred Bottrel (vídeos)
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Estado de Minas inicia homenagens aos 60 anos da obra fundamental de João Guimarães Rosa com relatos das jornadas de vidas e mortes de anônimos Diadorins do sertão mineiro em busca da própria identidade. Pessoas que, como a misteriosa criação do escritor, tiveram coragem para enfrentar os perigos e, tão certas de si, vivem "o calor de tudo"
Cordisburgo, Três Marias, Pirapora, Buritizeiro e Paracatu – O sertão de Minas não tem limites para a coragem, a determinação e o afeto. É possível atravessá-lo guiado pela luz do tempo, tocado pela emoção da natureza, conduzido pelas águas que brotam nas veredas mais íntimas. Mestre no seu ofício, o escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) ensinou o caminho em Grande sertão: veredas, monumento da literatura brasileira que completa 60 anos de publicação e até hoje, nem por um segundo, tira do leitor o prazer de conhecer o universo de violência onde floresce uma paixão absoluta. Tão verdadeira como o Rio São Francisco correndo para o mar.
No livro, o jagunço Riobaldo narra a sua saga, que inclui a descoberta do amor por Diadorim, colega de bando com sede de vingança e destemor nos olhos verdes, “tão perto demais de mim”. O sentimento que invade os sertanejos é o de “dois guerreiros, um poder se gostar por detrás de tantos brios e armas”. Entre uma batalha e outra na imensidão das Gerais, Riobaldo percorre quase todo o livro mergulhado em dúvidas e ambiguidades; somente na derradeira etapa descobre que Diadorim é uma mulher travestida de homem. Muito antes da revelação, contudo, ele já ostenta a maior das certezas: “O amor dá as costas a toda reprovação”. Como as pessoas deste especial.
Para o primeiro especial em homenagem às seis décadas de lançamento da obra-prima, a equipe do Estado de Minas percorreu cerca de 2,5 mil quilômetros em 10 dias e as trilhas campeadas pelos personagens principais da obra. São lugares fundamentais na história, como a Barra do Rio de-Janeiro, em Três Marias, e o Paredão de Minas, em Buritizeiro. E encontrou Diadorins, aqui representados por homens e mulheres, alguns ainda adolescentes, que se vestem de coragem para cruzar suas veredas, atravessar seus sertões interiores e assumir a busca da felicidade plena ao lado de alguém do mesmo sexo. “É o que eu digo, se for… Existe é homem humano”, sentenciou Rosa, antes de cravar a última palavra do seu épico: travessia.
Em Cordisburgo, terra natal do escritor, Ana Carolina e Pablo revelam seus encontros e descobertas, enquanto em Pirapora, Genildo fala de superação. Na velha Paracatu, Dália Gabriela exala coragem e Hiago mostra a arte da transformação. Já em Três Marias, a adolescente Luana professa o amor e o seu pai, ao dar uma lição de sabedoria, incorpora um dos ensinamentos do livro: “Ninguém tem a licença de fazer medo nos outros”. No entanto, viver continua a ser muito perigoso. A violência ainda impera em alguns rincões; dona Rosa, de Buritizeiro, pede justiça. Ela é mãe de Kiara Naomy, que nasceu Thiago e foi assassinada a pedradas.
“Aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”. As palavras de Grande sertão: veredas pulsam e comovem como as histórias reais. Assim, tendo igualmente como protagonistas os sertanejos que buscam na coragem a condição para vivenciar o calor de tudo, a obra sai da ficção e cruza o tempo. Alcança o infinito.
Mire e leia.
CORAGEM DE SER LUANA
Aos 15 anos, a menina vaqueira que tange bois na mesma fazenda da qual partiu a comitiva do escritor, em 1952, tem a bênção do pai para dividir cama com a namorada
Três Marias – Quase meio-dia e o sol se multiplica em claridade e sombras ao longo do Rio São Francisco. Águas barrentas, agora caudalosas pela chuvarada, seguem para o Atlântico levando junto o afluente de-Janeiro, mais estreito, de leito suave e com os tons próximos das matas protetoras. Um porto antigo, de terra batida, com duas canoas à espera de viajantes, se projeta como ponto de partida para histórias que atravessam o tempo sem deixar à margem, em qualquer momento, as novas gerações ribeirinhas. Desde menina, Luana Barbosa dos Santos, de 15 anos, aprendeu a conhecer a Barra do Rio de-Janeiro com a palma da mão, a planta dos pés e os olhos determinados. Correu pelas trilhas, tateou o tronco das árvores, viu os bichos e admirou o céu estrelado. “Sou parte desta natureza, tive meu pai como mestre neste mundo”, conta a adolescente de jeito tímido e que não deixa pergunta sem resposta. Assim como o rio que corre para o oceano, a jovem faz sua travessia sem medo.
Antes que o almoço de domingo fique pronto, Luana ainda tem muito para fazer na Fazenda da Sirga ou Capelinha, na zona rural de Três Marias, na Região Central de Minas – a propriedade tem história, pois foi dali, em 1952, que o escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), mineiro de Cordisburgo, iniciou a célebre cavalgada para tocar a boiada durante 10 dias pelos sertões das Gerais em direção a Araçaí, perto de Cordisburgo. De bermuda xadrez, cabelo preso, blusa de malha e terço no pescoço, presente do padrinho de batismo, a jovem transpira coragem, determinação, e confessa que não leu Grande sertão: veredas, nem ouviu falar em Diadorim, personagem do livro que completa seis décadas de publicação este ano. Mas quando cavalga com firmeza para ajudar a reunir o gado no curral, Luana torna as páginas escritas tão reais que fica difícil separar a palavras de Rosa do cenário iluminado pelo sol e sombreado pelas mangueiras.
De longe, o aposentado Vanderley dos Santos, de 55 anos, lança olhares de ternura para a filha. Foi com ele que Luana aprendeu a arrear o cavalo, sair a galope pelas estradas, tirar o leite das vacas, pescar e viver livremente pela fazenda onde nasceu e cresceu. Hoje, todos moram juntos em Três Marias e sempre retornam nos fins de semana, com acolhimento absoluto dos proprietários. Mas a harmonia nem sempre sorriu para a família. Criada sem a mãe, Luana mostrou cedo que, para namorar, preferia as meninas aos meninos. Em vez das bonecas, gostava mais de jogar bola na quadra da escola. Era diferente das coleguinhas e não escondia de ninguém.
O choque da descoberta pegou Vanderley de jeito, logo ele, homem acostumado com a lida na roça, entre vaqueiros e a criação no terreiro, do cantar do galo ao silêncio profundo da noite. A barra pesou e respingou em todos. Sentado perto do curral, ele diz que sofreu muito quando tomou conhecimento da orientação da filha, então com 13 anos, e, ao sentir que poderia perdê-la para o breu das incertezas, tomou uma decisão importante. “Sou humilde, então procurei gente esclarecida, que entendesse mais do que eu, para me explicar o que estava ocorrendo, o porquê de minha filha ser diferente. Não queria ficar sem ela, vê-la fora de casa.”
SEM RANCOR
Feliz por bater nas portas certas e encontrar boas respostas, Vanderlei se reconciliou com Luana e restaurou a harmonia familiar. Nessa volta, uma surpresa. A filha estava namorando firme uma menina dois anos mais velha e juntas estão há 10 meses. “Ganhei outra filha. Estou muito feliz”, orgulha-se o pai. Sobre o cavalo, Luana sorri discretamente e diz que pretende cursar biologia na universidade para ficar sempre em contato com a natureza, a ciência. “Tenho muita certeza do que quero, por isso conversei tão francamente com meu pai. Houve um período em que fiquei nervosa demais, saí de casa por um tempo, mas decidi minha vida. Aprendi com meu pai a ser forte e corajosa, cresci ao lado dele, e não dou muita bola para o que os outros dizem a meu respeito”, explica a adolescente.
O relógio andou e marca quase uma da tarde. Na porta, estão os familiares e Luana entra para ajudar a irmã a terminar o almoço. A Barra do Rio de-Janeiro vai ficando para trás, mas está marcada no Grande sertão: veredas, como o lugar de primeiro encontro, na flor da idade, entre Riobaldo e Diadorim, personagens principais da saga pelo sertão das Gerais. Antes de se despedir, a menina diz que “amar é desejar bem para quem está do lado”. E que amor sempre traz saúde.
DE HIAGO NASCEU DÉBORA
Por trás da maquiagem, uma transformação fundamental para se encontrar e a coragem necessária para enfrentar os perigos da noite
Paracatu – Nem céu azul, nem águas calmas, muito menos mar de rosas. A vida de Hiago Nathan Neiva Damasceno, de 24 anos, parece conhecer só ritmos acelerados, tons vibrantes e turbulências no percurso. À noite, o jovem morador do Bairro Paracatuzinho se transforma em Débora Salavales Montero, nome inventado e que recebe uma caprichada pronúncia em espanhol. “Eu gosto, porque chama a atenção”, confessa antes de uma gargalhada que afasta qualquer ar de timidez.
São 14h de uma tarde abafada e Hiago está vestido, em casa, como qualquer rapaz da sua idade: bermuda, camisa de malha e boné de aba virada para trás. Nos pés, sandálias de borracha. Apesar da aparência tranquila, ele repete várias vezes que a vida “não é um mar de rosas”, e, ao longo da conversa, mostra que tem talento na voz e poderia encarar o caminho das artes.
Sempre por perto, Aída Silva Neiva, de 61, olha toda orgulhosa para o filho, exibe fotos dos tempos de Hiago criança – numa delas, está fantasiado de índio – e diz que ele deveria ter continuado o curso de teatro. Desvelos de mãe: “Fico preocupada, porque ele sai à noite, volta tarde, bebe, há muita violência nas ruas...” Hiago não se incomoda, comenta que, por enquanto, quer se distrair, e que ainda não se cansou dos amores fugazes e mistérios da noite. “Eu me assumi como gay aos 11 anos, comecei a me montar (na gíria, vestir de mulher) aos 12 e fui para a noite aos 13. Não é uma vida fácil, tem sofrimento, até já apanhei, mas tem suas alegrias, o luxo”, afirma com os olhos buscando o infinito.
Travessia tão precoce começou com uma novela na tevê. Hiago assistiu à cena romântica entre dois rapazes e concluiu que entre a ficção e a vida real tudo era uma questão de atitude. E que, além da porta de casa, havia um mundo cintilando à sua espera. Uma tarde, conversou calmamente com a mãe, falou sobre as percepções, descobertas, enfim, “que era gay”. A mãe confirma que aceitou a condição do filho, só pediu encarecidamente que o filho não se vestisse de mulher. Não houve jeito, e logo, logo Hiago estava como manda o figurino... feminino.
O mar de rosas logo se abriu com os espinhos mais pontiagudos. À escola, Hiago passou a ir de cabelo rastafári, sofreu bullying por teimar em usar short apertadinho e blusa com a barriga de fora, até que decidiu abandonar livros e cadernos em troca das aventuras noturnas. Ficaram as marcas cruéis desse tempo. Hiago mostra os pulsos com uma leve linha arroxeada traçada a gilete.
À FLOR DA PELE A tarde vai chegando e Débora Salavales Montero quer ganhar vida, brilhar à luz feito uma borboleta, romper o casulo que Hiago fecha no fim das madrugadas. O primeiro passo na transformação é fazer a barba com esmero, “pois os clientes odeiam o contato da pele deles com esses pelos”. A próxima etapa, tão cuidadosa quanto a primeira, é a maquiagem, com capricho especial na sombra. Agora, é a vez da roupa, um vestido com estampa de onça, correntes douradas nas ombreiras, e dos sapatos: botinhas de camurça de franjas. Finalmente, a peruca tipo Beyoncé, cabelos fartos que dão mais poder e segurança ao ser que acaba de renascer. “Sobrancelhas benfeitas deixam o transformista mais efeminado”, diz Hiago, ao contemplar mais um vez o rosto no espelho de moldura alaranjada.
O cachorrinho de estimação Sailhon chega e não se espanta com a transformação e fica deitado num canto, como se estivesse acostumado. Mexendo os cabelos, Débora fala sobre as diferenças entre ela e seu criador. “Sou mais venenosa, debochada. Gosto de ser olhada, de me sentir desejada e de que as pessoas saibam que estou presente. Sou astuta, calculista, vulgar quando mexem comigo e posso ficar armada até os dentes”, resume a sua ópera bem particular.
Um dia, Débora poderá sair de cena e Hiago sabe disso. “Não tenho vontade de mudar de sexo, quero ser o que sou. Quem me julga não me entende”, avisa. O caminho poderá ser o palco: quem sabe fazer teatro, cantar. Ouvindo o desabafo, Aída põe fé na afirmativa e afirma que o filho tem dom de artista, só que não corre atrás. Nonada.
CAROL QUER CASAR
Nos dois filhos, ela descobriu a felicidade. Na lembrança de uma antiga paixão, a tímida mãe guarda o desejo de encontrar uma companheira para ser sua esposa
Cordisburgo – “Viver é muito perigoso…” Uma das frases emblemáticas Grande sertão: veredas é repetida com cuidado e pausa pela jovem Ana Carolina Caetano Soares, nascida e criada na cidade do autor Guimarães Rosa. Carol, como é chamada pelos amigos e parentes, sabe bem dos riscos desta vida e, solteira aos 21 anos, já tem dois filhos: um menino de 4 anos e uma menina de apenas um mês. Falando baixinho, enquanto amamenta o bebê, ela explica que as crianças foram geradas “em baladas”, situações inconsequentes. E prefere manter silêncio sobre os pais.
Tímida até os ossos, Ana Carolina tem um jeito de garotão, usa um calção azul até o joelho, tipo jogador de futebol, camisa polo listrada, sandália de borracha e um boné enterrado na cabeça. A aba sempre baixa impede que se vejam seus olhos negros – às vezes sorri, em outras prefere esconder as palavras, sentimentos e planos. “Sou feliz um bocado”, comenta logo depois de “guardar” o peito, descer a camisa e aconchegar a recém-nascida.
No pequeno cômodo sem reboco, construído no lote da família, em Cordisburgo, na Região Central, a jovem demonstra carinho pelos dois filhos na mesma intensidade em que confessa a atração por mulheres. Uma delas, o grande amor, está eternizada numa foto colorida pregada no armário do quarto e sala. Olhando o retrato da antiga namorada, Carol não faz rodeios. “Gosto dela até hoje. Queria muito ter alguém para chamar de esposa.”
Longe da mãe, que trabalha em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a jovem de Cordisburgo sabe que não é fácil conviver com as diferenças, ter dois filhos e ainda por cima estar solteira. “Conto muito com a família. Ser mãe é bom demais, já tive dois filhos e agora quero ligar (as trompas)”, diz Ana Carolina, vestindo a roupa no filho que, até então, andava peladinho pelo quintal.
O barracão inacabado abriga a família, e a jovem, que vive de pensão, espera o momento certo para terminar o banheiro erguido do lado de fora. “Às vezes, penso em ir embora, ficar com minhã mãe, que trabalha num condomínio. Mas aí acho melhor ficar aqui mesmo, pois tenho minha família e me sinto protegida.” O jeitão masculino não incomoda os parentes, muito menos a jovem, que sempre gostou de jogar futebol. “Uso essas roupas desde menina. É desse jeito que me sinto bem. Na escola, ninguém nunca falou nada comigo”, garante.
PAIXÃO A foto da garota, de pé na linha do trem de ferro, desperta lembranças e a velha paixão vem à tona. Quando começaram o relacionamento, as duas eram muito novas, houve intromissão “do outro lado” e tudo desandou. A reboque, chegaram juntas a tristeza e a decepção. Mas sempre disposta a dar a volta por cima na travessia da vida, Carol não perde a vontade de ser feliz. E quer o mesmo para os filhos. “Meu prazer é com as mulheres, não tem jeito”, sorri.
A tia de Carol, Sônia Suelânia Caetano, de 55, divorciada, aparece de supetão na porta do barraco, e não tem meias palavras. De frente para a sobrinha, diz que na família está tudo bem, não há preconceitos, “estamos superacostumados, mas pessoas ‘assim’, ainda mais sendo pobres e negras, sofrem bullying”. Na sua opinião, “há gays nas melhores famílias, tem pra todo lado, mas não se pode negar também que existe muito preconceito e o povo mascara a situação”.
Sônia ressalta que a sobrinha é ótima pessoa, mas foi mal orientada em alguns momentos. “Se as pessoas falam que ela parece homem... e daí? Para que esconder? É tudo tão normal”, pergunta e observa, ao mesmo tempo, com veemência. Carol ouve tudo quietinha, apenas olha para os filhos e repete que viver é muito perigoso. Por quê? E ela responde: “Porque ainda tem muita maldade”.
O DESABROCHAR DE DÁLIA
Nascida em uma das famílias mais tradicionais de Paracatu, a decoradora, que defende uma vida sem amarras e preconceitos, carrega tatuada no corpo e na alma a determinação de Diadorim
Paracatu – As águas do Rio Paracatu também vertem para o São Francisco, serpenteiam entre terras e veredas do sertão e banham Paracatu, antiga Paracatu do Príncipe, marco importante do velho caminho para o ouro de Goiás, a chamada picada de Goiás, que tem história e casarões coloniais, verdadeiros relicários. Num deles, na Rua Goiás, mora Dália Gabriela Ulhoa Bijos, 42 anos, de uma das famílias mais tradicionais da cidade e defensora de uma vida sem amarras, preconceitos e controle. Vivi, vivo e viverei, porque sou imortal – eis a frase tatuada na canela direita.
As seis tatuagens no corpo de Dália contam muito da travessia pela vida, das experiências inesquecíveis e de alguns momentos – por que não? – de gostosas loucuras. Com nome de flor, ela consegue ser suave, pontuando as frases com ar de mistério, e extremamente reservada. “Eu nasci assim, eu cresci assim...”, brinca ela com o segundo prenome, citando uma canção popular. No braço esquerdo, traz uma máscara maori, feita em Pirenópolis (GO), e pretende refazer uma outra na perna, herança da adolescência e já está meio desbotada. “Sou toda pintada”, brinca.
Na cozinha da casa da mãe, no Centro Histórico, Dália se acomoda numa cadeira e logo tem a companhia do gato de estimação, batizado de Joaquim Barbosa para homenagear o conterrâneo ilustre e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. O bichano escapole, entra na casa e guia os olhos dos visitantes até um banheiro projetado pela autodidata e especialista em projetos de decoração. Com piso de pedras, imitando as casas coloniais de Paracatu, o cômodo é um primor de conforto, funcionalidade e beleza. Dália agradece os elogios discretamente e conta que já fez projetos para restaurantes, pizzarias e outros ambientes.
Perto da mulher esguia, que gosta de malhar e de ouvir que se parece fisicamente com a cantora Cássia Eller (1962-2001), o tempo parece não passar. De tão agradável a conversa, dá vontade de extrair mais sobre suas travessuras de infância, aventuras de adolescência e segredos da vida adulta. Para começar, Dália diz que não gosta de rótulos, mas não esconde seus afetos. “Já tive uma companheira e atualmente estou solteira. Para falar a verdade, estou na melhor fase da minha vida”, avisa com bom humor.
O cheiro bom das comidas invade a varanda, indica que chega a hora do almoço, mas Dália tranquiliza e descarta a pressa. Boa de temperos, ela mostra a ótima relação com a família e lembra que nem o pai nem a mãe a obrigaram a se casar com um homem. Na escola, conta que sofreu bullying, alguns teimavam em falar seu nome no aumentativo, mas conseguiu evitar reações intempestivas e agressivas. “Isso me incomodava, mas nunca revidei.”
DESPERTAR Dália sempre soube dos seus desejos – desde menina. Namorou garotos, “beijei muito”, até que o amor chegou de forma arrebatadora. Para valer e encantar. Conheceu uma “pessoa” 11 anos mais velha, casada, enamorou-se perdidamente, até que o romance chegou ao fim. “Sou de enfrentar todas as coisas. Quando quero, não escondo, falo sempre a verdade, não dou conta de mentiras”, diz Dália, agora ansiosa e curiosa para ler Grande sertão: veredas, principalmente para conhecer a personagem Diadorim, a jovem que se traveste de homem, tem sede de vingança e vive no meio da jagunçada nos sertões do Norte e Noroeste mineiros.
Assim como Diadorim, Dália exala coragem. Para ela, não há nada mais importante do que ser feliz. Em todos os momentos, garante que tem o apoio incondicional da família. A cada momento, a mãe, dona Lazy, chega perto e ganha um afago. Para homenageá-la, a filha recorreu aos guardados da casa, garimpou as melhores receitas, como a famosa desmamada e o bolo de domingo, que leva dias para ficar pronto, e editou um livro carinhoso. “Viver não é nada perigoso. Tenho o respeito de todo mundo, trabalho, e sou espírita praticante. Aliás, o espírito não tem sexo, não existe essa divisão de homem e mulher.”
Olhando a tatuagem na canela direita, Dália lê devagarzinho o que está escrito e passa a mão sobre a frase, avisando que não quer nada com o sofrimento. “Ainda há muito preconceito contra as pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. Aqui tem ‘muita’ gente, alguns preferem não se mostrar, mas se reunir em restaurantes e bares aonde todo mundo vai. A noite, afinal, protege as pessoas.” Com um afago no gato de estimação, Dália conta que tem muitos amigos gays que não se revelam, porque os pais não aceitam. “Ninguém pode ficar sozinho, só não acho legal ter vida dupla. É preciso ter coragem”, acredita.
A LUZ DE GENILDO
Admirador da obra de Rosa e cabeleireiro de Bruna Lombardi nas gravações de Grande sertão renasceu ao descobrir que é soropositivo, há quase 30 anos
Pirapora – Travessia suave, respeitosa, numa conquista diária para a felicidade da alma e os prazeres do corpo. Por onde passam, sertão adentro, as águas do Rio São Francisco banham vidas, permeiam histórias e nunca deixam de irrigar o coração de Genildo Castro, de 64 anos, o Gegê, nascido em Juazeiro (BA) e morador, desde que se entende por gente, de Pirapora, na Região Norte de Minas.
Admirador da obra Grande sertão: veredas, que leu na juventude, Gegê conta casos memoráveis, mantém um bom humor contagiante e afasta, com valentia, a presença de qualquer prenúncio do mal ou baixo-astral. Com ele, nada de “o diabo, na rua, no meio do redemoinho”, como escreveu Guimarães Rosa sobre os embates do jagunço Riobaldo com o demo. Espírita kardecista, Genildo diz que mais vale ter fé para afastar qualquer rastro do coisa ruim. “Tenho Deus e Madre Teresa de Calcutá comigo”, confessa o orientador do Programa de DST/Aids da microrregião de Pirapora. Ao entardecer, diante do Velho Chico, Gegê revela que tem um companheiro há quatro anos e, com total tranquilidade, conta que se descobriu soropositivo há 28 anos, embora hoje, segundo ele, a carga viral seja indetectável.
Grande sertão: veredas deixou marcas na vida de Genildo. Com entusiasmo, ele recorda a minissérie levada ao ar em 1985, pela Rede Globo, com os atores Tony Ramos no papel de Riobaldo, e Bruna Lombardi encarnando Diadorim e seus olhos verdes. “Na época, eu trabalhava como cabeleireiro e maquiador no Hotel Canoeiros, em Pirapora. Como o cabelo da Bruna tinha que ficar muito curtinho para fazer o papel e ficar parecida com um rapaz, ela era obrigada a cortá-lo de três em três dias. Houve um problema na equipe, o cabeleireiro voltou para o Rio de Janeiro e eu assumi as tesouras.” Como se tratava de uma produção ambientada em lugares de muita poeira, ele ainda fazia a maquiagem na atriz, deixando a pele branquinha, com as cores da terra.
Gegê diz que nunca escondeu sua orientação sexual de ninguém e se considera um pioneiro, quebrando tabus em Pirapora. “No interior hoje está bem melhor, mas já foi muito difícil para quem tem um comportamento diferente. Preconceito sempre existiu, é bobagem negar, mas está havendo mais aceitação. Na minha juventude, trabalhou aqui um delegado apelidado de Broquinha que prendia os gays e mandava raspar a cabeça deles. Comigo nunca aconteceu nada, graças a Deus!”
FIO DA NAVALHA A experiência diária no Programa de DST/Aids tem levado Genildo a várias regiões do país para fazer palestras sobre as doenças sexualmente transmissíveis. “Falo em todo tipo de ambiente e tenho uma linguagem específica para cada público, de funcionários de empresas a estudantes. Mas gosto mesmo é da minha terra, Pirapora”, afirma com um sorriso de quem vai e volta das viagens com alegria.
As palestras são a deixa para Gegê voltar à Aids, assunto que não o intimida. “Contei muito com o apoio da minha família e decidi não me entregar ao sofrimento, muito menos me tornar um suicida. Vivi uma fase muito turbulenta, encarei com coragem e estou aqui feliz da vida. Logo depois que descobri ser soropositivo, escrevi e encenei o monólogo O quarto escuro, procurando exorcizar todos esses fantasmas. Vi muita gente morrendo.”
Sempre que pode, Gegê gosta de comer um surubim na brasa, recém-fisgado, ou caminhar à beira do São Francisco apreciando o infinito que se mistura à sua trajetória e parece um único elemento da natureza. A cada passo, no entanto, ele é parado com carinho por colegas do trabalho, casais com seus filhos, gente simples e autoridades, numa demonstração de participação comunitária. “Respeito as pessoas, trato todos com dignidade e amo viver”, diz Gegê. Ele acrescenta que a vida só é perigosa para aqueles que usam drogas, fazem sexo sem segurança, enfim, transitam no fio da navalha.
Vaidoso, Gegê sonha viver “200 anos” e diz não ter medo do passar do tempo. “A cada dia, olho no espelho e me acho maravilhoso. Cultivo a alegria, pois tristeza faz mal à saúde.”
PABLO ENCONTROU A FELICIDADE
Conterrâneo de Guimarães Rosa enfrentou rejeição e violência por se vestir de mulher. Mas soube o que é amar nos braços do atual companheiro
Cordisburgo – O sertão de Guimarães Rosa começa na cidade onde ele nasceu e passou a infância ouvindo histórias de vaqueiros e dos demais frequentadores da venda de seu pai, Florduardo, mais conhecido como seu Fulô. O imóvel do fim do século 19, em frente da antiga estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, inaugurada em 1904, tinha posição privilegiada e permitia ao menino ver o embarque do gado criado nas fazendas da região. Na casa, funciona desde 1974 o Museu Casa de Guimarães Rosa, vinculado à Superintendência de Museus e Artes Visuais da Secretaria de Estado da Cultura, com documentos, originais de livros, objetos de uso pessoal, móveis, fotografia, obras de arte, quadros e edições importantes das publicações.
O museu é fundamental para se conhecer a trajetória do escritor, médico, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras. E mergulhar fundo no universo de Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, Hermógenes e outros personagens de Grande sertão: veredas. Nessa terra, é possível conhecer também moradores que, mesmo sem ler o livro, falam com desenvoltura, naturalidade, como se fossem íntimos ou parte da história. Gente que faz sua travessia sem olhar para os abismos, enfrenta seus demônios e outros tantos no meio do “redemunho” e tem certeza de que o homem não foi feito para “o sozinho”.
Na sua trilha de vida, Pablo Júnior Vieira Oliveira, de 29 anos, está certo de que, para seguir adiante, é preciso “um tiquinho de coragem”. E, dessa forma, tem norteado dias e noites. O sustento, ele tira de faxinas; o bem-querer, de um relacionamento de seis anos com o companheiro, ambos vivendo numa casa modesta em Cordisburgo. Pablo sabe bem, por experiência própria, que “amar pode ser perigoso se um dos dois não corresponder”.
MEMÓRIAS As palavras correm soltas na varanda da moradia, como um rio que segue acelerado para o mar. Pablo conta que, quando tinha 2 anos de idade, foi atropelado e ficou em estado de coma por vários dias. Desse tempo, vem a sequela que interfere um pouco no jeito de falar, mas nada chama tanto a atenção como as unhas cuidadosamente benfeitas e pintadas de azul. As mãos fazem um movimento delicado, puxam a alça da camiseta feminina vermelha, e Pablo faz uma revelação: “Não sou travesti. Sou um homem que se veste de mulher”.
Sem medo das lembranças, o jovem diz que as descobertas começaram aos 18, 19 anos, ao se mudar para Belo Horizonte em busca de trabalho. Foi a uma boate, levado por um amigo, deu um beijo num rapaz, e não demorou muito para o pai ver uma foto no celular e ligar os pontos. O resultado foi o pior possível. “Ele me bateu tanto, que meu nariz sangrou. Fiquei revoltado e saí de casa definitivamente”, afirma com os olhos brilhando de emoção. Desfizeram-se, então, os laços e Pablo seguiu seu rumo. Mais tarde, começou a se vestir de mulher. “Primeiro, foi um shortinho. Aí comprei uma saia”, recorda-se. Ao falar das peças, ele entra na sala da casa e busca uma sacola cheia de vestidos, mostrando um bege listrado de marrom, considerado o preferido. “Somente vivendo do jeito que se é, do modo que se gosta, pode haver felicidade. Não vou viver como os outros querem”, ressalta Pablo, que se sentia envergonhado de usar calças compridas e outras roupas do guarda-roupa masculino.
O tempo tem sido companheiro do rapaz, nascido e criado em Cordisburgo. Hoje, tem um bom relacionamento com parentes residentes na cidade, embora sem se iludir com o resto da humanidade. “Noventa por cento dos homossexuais sofrem preconceito. Por quê? Não sei, mas tem de todo lado, de brancos contra negros, de homens contra mulheres... Há muita gente ‘saindo do armário’ e eu, particularmente, me sinto mais protegido numa cidade menor, na cidade onde nasci. Todo mundo aqui me trata bem.”
EVOLUÇÃO As lembranças da mãe, Maria Luzia, no entanto, fazem os olhos de Pablo marejarem novamente. Ela morreu quando o filho tinha 10 anos e, preocupada, o levava periodicamente às sessões de fisioterapia. Com a morte dela, foi interrompido o tratamento e não houve evolução no processo, o que ele lastima: “Devido ao estado de coma, perdi um pouco do lado esquerdo do corpo.”
Refeito das tristes recordações, Pablo está certo de que não há sentimento tão forte quanto o amor. “Felizmente, gosto de homens e tenho um carinho imenso pelo meu marido. Não ser correspondido acaba em sofrimento e sei que, para amar alguém, é preciso se amar primeiro.”
O SANGUE ESCONDIDO DE KIARA
Família clama por justiça a jovem assassinada na mesma região onde Diadorim é morta durante a batalha final descrita no livro
Buritizeiro – Rio do Sono, terra vermelha, pedras, borboletas e a montanha símbolo sustentando o infinito. Paredão de Minas, pequena comunidade a 82 quilômetros da Ponte Marechal Hermes, entre Buritizeiro e Pirapora, marca o desfecho de Grande sertão: veredas com a batalha final dos jagunços pelo sertão. Brutalidade, violência e crueldade não moram apenas nos grotões ou nas páginas da obra de Guimarães Rosa e, ainda hoje, assustam famílias de Buritizeiro, às margens do Rio São Francisco. Nos tempos modernos, um crime bárbaro ocorrido há um ano e meio na sede do município deixa uma pergunta no ar: quem matou Thiago da Silva Mendes e apedrejou Kiara Naomy?
Kiara Naomy era o nome social de Thiago da Silva Mendes, de 20 anos, cabeleireiro, assassinado perto de sua casa em 22 de agosto de 2014, às 6h20. Teve o rosto desfigurado por uma pedra enorme, tudo indica, encontrada nos fundos da construção de um posto de saúde. Até hoje a polícia não concluiu o inquérito e, embora não tenham sido encontrados indícios, as pistas apontam para um acerto de contas com traficantes, sem se descartar a possibilidade de crime ligado ao sexo.
A transexual martirizada em Buritizeiro é uma das muitas vítimas nas estatísticas: entre 2008 e 2014, o Brasil foi o país que mais matou travestis e transexuais, conforme a ONG Transgender Europe. De acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), criado há 36 anos e mais antiga instituição do país na defesa dos direitos da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), a cada 18 horas, um homossexual é assassinado no Brasil. Segundo o presidente da entidade, Marcelo Cerqueira, passou da hora de a homofobia ser criminalizada, a exemplo do racismo. Na sua avaliação, há muita lentidão para apurar os delitos. “O delegado prende e a Justiça manda soltar. Além disso, há perda de prazos nos processos e os réus ficam, no máximo, um mês detidos”, critica Cerqueira, ressaltando que as ocorrências são sempre motivadas pelo ódio.
JUSTIÇA Na varanda de casa, segurando um porta-retrato com a foto do filho ainda criança, Rosa Gonçalves da Silva, de 39 anos, pede justiça. “Quero ver o fim desse inquérito. Que mãe não quer saber quem matou seu filho?”, pergunta com a voz de quem não perde a esperança. Às vezes, Rosa não suporta a ausência de Thiago e desata no choro, como se as lágrimas estivessem esperando o momento certo de desabar. Enxuga o pranto e volta às lembranças. “Era um menino dócil, tranquilo e calmo. Não era de briga, mas sei que há muito preconceito neste mundo. Ele não mexia com drogas, não tinha inimigos ou rixa com outras pessoas”, afirma a mulher, evangélica, que tem mais três filhos.
Rosa se acostumou com o jeito de Kiara. “Ele chegava no portão e já ia me gritando e dizendo alto seu ‘nome de guerra’. Era muito querido por todos nós; minha filha, de 16 anos, pensa futuramente em tatuar o nome Thiago para homenageá-lo”, conta Rosa. Olhando novamente o retrato, a mãe diz que, três semanas antes do assassinato, ela sonhou com o filho lhe pedindo socorro: “Ele rastejava e tinha o rosto sujo de poeira.”
IMPUNIDADE A cabeleireira Izaura Almeida de Freitas não se conforma com o assassinato de Kiara, a quem ensinou o ofício desde os 13 anos, muito menos com a falta de elucidação do caso. “Uma pessoa pobre, negra e homossexual não tem vez no Brasil”, lamenta. Logo em seguida, as qualidades do amigo e pupilo vêm à tona. “Thiago era um profissional maravilhoso, um filho para mim. Na semana em que morreu, participamos de um curso em Pirapora e ele se saiu muito bem, fazendo escova no cabelo de todo mundo”, recorda-se Izaura, dona do salão de beleza Explendor e mãe de dois filhos.
A cabeleireira acompanha toda a história e chega às lágrimas diante da impunidade. “Ele saía com várias pessoas e depois contava, de forma engraçada, ‘os babados’. Mas ele contava a história e nunca revelava o nome do santo”, ressalta a cabeleireira sobre os segredos guardados a sete chaves pelo funcionário e amigo. Assim, ela não tem ideia de quem seria o culpado. “Minha filha chora até hoje de saudade. Era a alegria em pessoa, fazia palhaçada. Teve muita gente no seu velório.”
Para suportar a dor da perda, Izaura procura manter silêncio em casa e no salão. As fotos do celular não existem mais, para afastar o choro constante. Não foi em vão que, em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa escreveu que “ficar calado é que é falar nos mortos”. De repente, com os olhos cheios de lágrimas, ela diz que, se Kiara fosse sua filha, “iria até as últimas consequências para pedir justiça”.
No momento da morte, Kiara estava, conforme descrito no inquérito, com um “vestido estampado, sutiã preto, calcinha bege e sandália preta”. Mas Thiago foi enterrado, a pedido da mãe, com uma calça social azul e camisa branca. De Kiara ficaram apenas as unhas pintadas de vermelho.
SURPRESA DO DESTINO
“Era um dia de aula normal, eu tinha 12 anos, mas se tornou especial e inesquecível desde o momento em que, na escola, entreguei um exercício para a professora corrigir. Num milésimo de segundo, sem querer, ela encostou a mão na minha mão e senti um arrepio, algo que me esquentou o corpo e acelerou o coração. Fiquei muda. Ao chegar em casa, reuni as forças e falei para minha mãe que não gostava de homens para namorar – em resposta, ela disse que nunca mais na vida eu repetisse isso. Obedeci.
O tempo passou e logo meus pais me arranjaram um namorado. Noivei, casei, vivi com ele durante 40 anos, tive quatro filhos e hoje tenho 10 netos. Nunca fui feliz no casamento, tanto que, a cada relação sexual, chorava baixinho no banheiro. Era um misto de dor, nojo e repulsa, meu corpo não aceitava, minha alma não queria. Jamais senti prazer, um arrepio bom.
Há 10 anos, ele ficou doente, cuidei do meu velhinho até o fim e ele morreu... graças a Deus. Mas o destino me reservava uma boa surpresa aos 55 anos de idade. Uma amiga se declarou para mim, disse que sempre me amara em segredo e queria ficar comigo. Eu tinha muita simpatia por ela, pensei bem e acabei aceitando as suas investidas. Aí, sim, vi o que era ser feliz.! Desde a revelação, estamos juntas.
No entanto, quem tem filhos crescidos e netos tem de manter o anonimato. Se pudesse, escancarava mesmo”.
M. de 65 anos, dona de casa
VOO DA CORAGEM
“O desejo a gente não controla. Até meus 16 anos, vivi numa cidade pequena, onde meu pai era juiz de direito. Imagina, eu, filha de uma autoridade no interior de Minas, tocando violão em barzinho e com aquele desejo ‘diferentão’. Na infância, meu herói foi meu único irmão, vivíamos juntos. Os amigos dele eram também os meus. Um dia, ouvi uma música que me fez parar.. era Cássia Eller e Nando Reis tocando All star…
Em três meses, já estava dedilhando essa canção. Certo dia, cheguei em casa com meu violão, vindo de uma apresentação num barzinho. Eu já estava no meu quarto, quando meu pai entrou com o cinto na mão. Eu esperei pelo pior e não teve nada pior do que as chibatadas que levei. O mais dramático é que meu pai não falou nada – só me bateu.
Escolha? Alguém acha que eu escolheria apanhar do pai apenas por ter um desejo que não é voluntário? Hoje eu não vivo mais no interior, me conheço cada vez mais, aprendi que a vida exige o voo da coragem ou o destino da amargura. O sonho é o desejo que ganha asas, voei para longe, estudei, amei, ri, chorei, não me permiti esquivar das experiências.”
W., 29 anos, médica
ODEIO INTOLERÂNCIA
“Tenho boa situação financeira, sou jovem, branco e pertenço a uma família tradicional. Por isso, acredito, sou respeitado por todo mundo do meu ciclo social. Não é nenhum tipo de arrogância, pelo contrário, mas sei que ainda há muito preconceito contra homossexuais no Brasil, principalmente se são pobres e negros. Eu também respeito todo mundo, acho que é por isso mesmo que as pessoas têm carinho e consideração por mim.
O meu grande sonho é morar num lugar onde possa fazer tudo o que quero – acho que fora do país. Tenho um caráter libertador, odeio intolerância, não quero viver num mundo de mentiras, de encenações, de vida dupla. A questão do gênero não deve ser primordial na vida, mas sim qualidades como inteligência, força para trabalhar, amor à humanidade e coragem para realizar. Sei muito bem que, por ser diferente, preciso dançar conforme a música. Tenho um companheiro e não ficamos de abraços e beijos em público. Somente quando estamos num lugar mais reservado é que ficamos à vontade”.
G., 33 anos, empresário
O MUNDO MUDOU
“Em algumas cidades do Norte e Noroeste de Minas, há nichos homossexuais bem diversos. Tem aqueles que dão pinta e outros mais reservados, embora igualmente resolvidos sexualmente. Curiosamente, os dois não se relacionam socialmente. Sou funcionário público, formado em universidade, e não escondo dos superiores minha orientação sexual. Eles respeitam, pois sou cumpridor dos deveres e estou sempre disposto a trabalhar.
Pertenço ao grupo que se expõe menos, embora, no carnaval, não tenha medo de dar bastante pinta. O mundo mudou mudo, a cabeça de determinadas pessoas é que insiste em viver na idade da pedra. No interior de Minas, as pessoas ainda custam a aceitar os gays, mas, incrivelmente, parece que toda casa tem um filho, um primo, um tio gay. Não chegou a hora, portanto, de haver mais respeito?”.
J., 30 anos, funcionário público
APOIO DA FAMÍLIA
“Muitos gays saem de casa bem cedo, temendo represálias dos pais, olhares atravessados dos amigos ou ‘coió’ (bullying) de pessoas que você nem conhece direito. Vim para Belo Horizonte há mais de 40 anos, mas não por esse motivo – gosto da minha terra e do meu povo e sempre fui bem tratado –, mas para acompanhar o tratamento médico de um parente. Cheguei, gostei e fiquei. Hoje, com todo o avanço, vejo que o homossexual, para ser feliz completamente, precisa de apoio da família, do carinho dos irmãos, do olhar afetuoso das tias e tios.
A marginalidade é o pior caminho, pois traz péssimas companhias, drogas, sexo indiscriminado, bebedeiras e solidão. Ficar sozinho numa cidade grande é o pior castigo. Nada melhor do que viver na terra natal, com amigos, trabalho e dignidade. Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa escreveu que “viver é muito perigoso”. Concordo, mas só se não houver segurança em todos os sentidos”.
P., 68 anos, profissional liberal
Durante 10 dias, a equipe de reportagem do Estado de Minas percorreu os caminhos da jagunçagem do bando de Riobaldo - narrador de Grande sertão: veredas - em busca do que poderiam ser os Diadorins de hoje: figuras que encarem com coragem batalhas de questões ligadas às expressões do masculino e feminino, quebrando estereótipos de gênero no sertão contemporâneo. A reportagem visitou cidades citadas na monumental obra e também localidades no caminho da boiada que o escritor acompanhou em 1952 e serviu de inspiração para o livro.
Os jornalistas envolvidos diretamente na viagem comentam a experiência.