Pablo Neruda e outras imagens inéditas de um 'fotógrafo vagabundo'

Resgatamos fotografias históricas que o chileno Sergio Larrain, primeiro latino-americano a integrar a lendária agência Magnum, produziu nas décadas de 1950 e 60 para a edição internacional da revista. Entre elas, registros inéditos de Pablo Neruda

Sergio Larrain tinha 27 anos, um abandono de faculdade nos Estados Unidos e nove anos de experiência desde a compra de sua primeira câmera Leica quando ajeitou o papel timbrado do Hotel Novo Mundo na máquina de escrever. Era 14 de setembro de 1958. De sua hospedagem às margens da Guanabara, no Flamengo, o fotógrafo chileno endereçou a carta ao gerente da revista O Cruzeiro Internacional, dos Diários Associados, com o relatório de sua viagem de seis meses por quatro países da América do Sul. Uma travessia da Terra do Fogo, arquipélago ao extremo-sul da América, à altitude de 4.000m das montanhas de prata de Potosí, na Bolívia.

Os envelopes com os negativos entregues à publicação de Assis Chateaubriand faziam parte do primeiro trabalho como freelancer de Larrain, que no ano seguinte se tornaria o primeiro latino-americano a fazer parte da Magnum, a mítica agência fundada pelo francês Henri Cartier Bresson. Na Europa, teve uma produção pulsante até o fim dos anos 1970, quando se retirou em Tulahuén, norte do Chile, para se dedicar à ioga e meditação até a morte, em 2012. Sua forma poética de registrar o cotidiano encantou e inspirou, não só Bresson e o mundo da fotografia, mas escritores como os conterrâneos Pablo Neruda, Roberto Bolaño e o argentino Júlio Cortázar, a quem uma fotografia serviu de inspiração para o conto As babas do Diabo (1959), que deu origem ao filme Blow Up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni (1968).

“Ele trouxe seu olhar especial para a Magnum e até mesmo alguns dos mais jovens fotógrafos hoje em dia estão citando-o como uma inspiração”, escreveu por e-mail ao Estado de Minas a francesa Agnàs Sire, diretora de arte da Magnum por mais de 20 anos, amiga do chileno e curadora da exposição Um retângulo na Mão, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, até 25 de agosto.

Neste especial, o EM publica fotos, algumas inéditas, de Larrain na revista O Cruzeiro Internacional, edição em espanhol da publicação ilustrada mais lida do Brasil na metade do século passado. A versão, vendida em países da América Latina e Estados Unidos, durou de 1957 a 1965. A estreia do chileno foi em novembro de 1957, em reportagem sobre as festividades religiosas de La Tirana, na província chilena de El Tamarugal. No ano seguinte, viajou por Chile, Bolívia, Paraguai e Argentina para produzir 11 reportagens, das quais O Cruzeiro se interessou por sete, todas em terras chilenas e bolivianas.

Entre os trabalhos estão “Pablo Neruda y el mar”, série de fotos do poeta chileno em Valparaíso, uma paixão que ambos compartilhavam. O poeta, amigo do pai de Larrain, um arquiteto da alta burguesia chilena, foi fotografado à vontade em sua casa de Isla Negra, caminhando pela praia, escrevendo e observando o mar, tema recorrente em sua obra.


Segundo o tradutor Jorge Schwartz, Neruda deu a Larrain o apelido de “fotógrafo vagabundo”, por enxergar no chileno, décadas mais jovem, um flâneur com câmera nas mãos.

Na década de 1960, o fotógrafo e o poeta trabalharam intensamente juntos. Em 1966, a revista suíça Du Atlantis publicou uma série de fotos de Larrain acompanhado de texto inédito de Neruda. No mesmo ano, o escritor encomendou ao amigo imagens para Una casa en la arena, livro sobre sua residência costeira.

DA BURGUESIA AO RETIRO

Larrain nasceu em Santiago, em 5 de novembro de 1951, em uma família da alta burguesia mas nunca se interessou pela rotina da casa do pai, arquiteto e colecionador renomado. No início dos anos 1950, mudou-se para os Estados Unidos para estudar engenharia ambiental, mas acabou se interessando mais pela câmera Leica que comprara em Berkeley, na Califórnia. Sem completar a universidade, retornou ao Chile e começou a fotografar, enviando trabalhos para galerias e salas de exposição.

Em 1957, consegue o primeiro trabalho de freelancer em uma publicação. “O que está na biografia dele é que chegou a Cruzeiro através do Santiago del Campo, que já colaborava com a revista. O Santiago era um jornalista, dramaturgo, intelectual e tinha uma casa frequentada pela elite cultural do momento, como Jodorowsky”, afirma o escritor e tradutor Miguel del Castillo, autor do artigo Sergio Larrain na Revista O Cruzeiro Internacional, do Instituto Moreira Salles.

No fim de 1958, Larrain mudou-se para Londres e, no ano seguinte, ingressou na Magnum, onde permanece até 1966. O apreço pela liberdade de fotografar ajudou a afastou Larrain das publicações. “Ele era um homem livre. Estava com medo pelo fato de que fazer uma reportagem para um jornal poderia ser uma armadilha ideológica e ele estava certo. Essa é a mesma razão pela qual Cartier-Bresson também parou de fazer tarefas para revistas”, afirma Sire.

Na década seguinte, o fotógrafo ainda cobriu o golpe de estado que derrubou Salvador Allende, em 1973, antes de partir para o retiro definitivo em Tulahuén, com o filho. Na década de 1990 e 2000, teve o trabalho reunido em diversos livros até a morte, em 2012. Deixou um trabalho marcado pelos movimentos e pela simplicidade do cotidiano. A forma livre de fotografar abria mão de alguns rigores do ponto de vista técnico, como os horizontes inclinados, figuras cortadas e primeiros planos desfocados. Nas palavras de Bolaño, Larrain “parece o fotógrafo acidental. Parece o fotógrafo brincalhão. Parece o menino chileno solto, livre de amarras”, escreveu em Los Personajes fatales, de 2006.

Como o próprio fotógrafo escreveu, em carta de 1982, traduzida e publicada pela revista ZUM, “o mundo convencional põe um biombo diante de você. É preciso sair de trás dele durante o período de fotografar.”

Entre 1957 e 1960, Sergio Larrain publicou ao menos 12 reportagens na revista O Cruzeiro Internacional. O trabalho se revela precioso por ser o primeiro emprego do fotógrafo, que pouco depois partiria para a carreira na Europa, como membro da agência Magnum. As fotos mostram o olhar poético de Larrain, que afirmava que “uma boa imagem nasce de um estado de graça.”

As colaborações são no estilo de fotorreportagem, modelo que privilegiava as imagens que O Cruzeiro importara de forma bem sucedida de publicações como a norte-americana Life. Das 12 reportagens, sete são do Chile e duas, em Potosí e Santa Cruz de la Sierra, são resultado da viagem do fotógrafo pela Bolívia. As outras três, publicadas em 1959, são da fase europeia, em reportagens na Inglaterra, França e Bélgica.

Em seu país natal, Larrain fotografou lugares ermos e gelados, como os vaqueiros no Estreito de Magalhães, no extremo sul do país; as geleiras e navios abandonados da Terra do Fogo; o cotidiano da Ilha de Chiloé; e os cerros de Valparaíso. A estreia foi em 1º/11/1957, sobre a festa religiosa em louvor a Virgen del Carmen de La Tirana, quando os moradores se vestem em trajes espalhafatosos e intercedem pelos milagres da “Carmelita”.

La Tirana

“Os milhares de peregrinos do Peru, Bolívia e Argentina, que se reúnem nos pampas chilenos de Tamarugal, se somam aos fiéis do norte do Chile, em 16 de julho de cada ano, para cantar, dançar e elevar suas preces em honra de uma imagem da Virgen del Carmen. Guiados por sua fé religiosa, eles vêm vestidos com estranhas roupas e toda sorte de cocares e instrumentos de origem inca e espanhola.”
Texto de Santiago del Campo e fotos de Sergio Larrain, 1º/11/1957

Magalhães: onde o Sul se faz nórdico

“Viajar pelo Magalhães chileno é saltar para outra dimensão, não só geográfica, mas humana. Homens silenciosos, duros, sérios, que falam pouco e brincam menos. O ar do rosto tem muito eslavo; na voz, um leve sotaque argentino. Eles se vestem como nos filmes do Velho Oeste ou como em “A corrida do Ouro”, onde o pequeno Chaplin vaga perdido entre gigantões” 
Texto de Santiago del Campo e fotos de Sergio Larrain, 1º/11/1958

Chiloé, uma ilha de lendas

“Aqueles que ainda sonham com uma ilha no Pacífico, onde a paz é a norma da vida; o sorriso, o sinal da coexistência; e a comida do mar, o ‘pão nosso de cada dia’, não precisam sair do nosso continente. Basta contornar a costa chilena e desembarcar em Chiloé, a ilha das ostras, batatas e lendas”
Texto de Santiago del Campo e fotos de Sergio Larrain, 1°/12/1958

A cidade pendurada nos morros

“As luzes penduradas nos postes de cimento e o panorama dos guindastes à sombra do ‘nevoeiro’ nos dão um aspecto da aurora em Londres, mas essa foto foi tirada a milhares de quilômetros da capital inglesa, do porto de Valparaíso, varanda chilena de frente para o Pacífico”. (...) “Valparaíso é como uma pintura que saiu da paleta de um pintor ingênuo. A cidade parece pendurada nas colinas e está cheia de escadas e elevadores”
Texto e fotos de Sergio Larrain, 1º/1/1959

Santa Cruz de la Sierra

“Apesar de seu desenvolvimento incipiente, Santa Cruz é o departamento boliviano cujo progresso é melhor delineado, devido à sua riqueza mineral inumerável, para não mencionar outros produtos generosos de seu solo, entre eles, cana de açucar, arroz, baunilha, quinina, tabaco e café.”
Texto e fotos de Sergio Larrain, 1º/3/1959

Potosí

“A população de Potosí é uma das mais interessantes do mundo, os mineiros são os mais típicos, devido às suas indumentárias características e sua vida difícil arranhando a barriga da perigosa montanha”
Texto de Felipe Tredinnick-Abasto e fotos de Sergio Larrain, 16/10/1960

Braço latino-americano de O Cruzeiro, O Cruzeiro Internacional chegou a ter mais de 300 mil exemplares impressos por edição, vendidos em 22 países no fim da década de 1950. Mesmo com textos em espanhol, era comercializada também nos Estados Unidos e Canadá. A revista foi às bancas pela primeira vez em 1957 e, nas palavras de Assis Chateaubriand, era “um desafio ao deserto que nos separa uns aos outros na América Latina”, escreveu no editorial do primeiro número. Circulou até 1965.

A direção era brasileira e as edições quinzenais seguiam o padrão da versão nacional, criada em 1928 e que foi a principal revista ilustrada do Brasil na primeira metade do século passado. O Cruzeiro cresceu exponencialmente no início da década de 1940, passando de 48 mil exemplares, em 1942, quebrando a barreira dos 300 mil em 1949, graças ao trabalho de repórteres como David Nasser, do fotógrafo e cineasta francês Jean Manzon e de colaboradores de diversas áreas, de escritores como Érico Verissimo, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, a artistas como Anita Mafaltti e Di Cavalcanti.


Na década de 1950, continuou crescendo a ponto de, em 1957, Chateaubriand lançar o projeto internacional. As imagens, assim como a edição brasileira, eram o destaque. “O Cruzeiro adotou a fotorreportagem, popularizado pela Life. As imagens têm destaque maior que o texto, às vezes até radicalizando”, afirma Miguel del Castillo, que pesquisou a passagem de Sergio Larrain pela revista, entre 1957 e 1960. “Larrain ganha espaço em O Cruzeiro Internacional, por essa possibilidade de aceitar fotos que não eram tão ortodoxas, até mesmo para este padrão Life.”

COLABORADORES

Para a edição internacional foram contratados diversos repórteres e fotógrafos dos países vizinhos. Eles se juntaram a fotógrafos renomados na versão brasileira, como Luiz Carlos Barreto, José Medeiros, Pierre Verger, Ed Keffel, Henri Ballot, Flávio Damm e Luciano Carneiro. Algumas matérias eram traduzidas, mas muitas eram produzidas exclusivamente para a edição em espanhol.

Havia também a preocupação em adaptar os textos a um espanhol compreensível em todos os países aos quais chegava. A iniciativa era constantemente elogiada na seção de carta dos leitores. “Nenhuma outra revista tem expressado com maior sinceridade, cor e fervor, a alma do do latino-americano”, escreveu o leitor Berrone Roldan, de Rafaela (Argentina), em um número de 1958.

Além das reportagens revelando um lado pouco conhecido dos latino-americanos e de balneários badalados, como Acapulco (México) e Punta del Este (Uruguai), as capas costumavam estampar grande estrelas da música e do cinema, de Carlos Gardel à estrela francesa Brigitte Bardot em seus primeiros anos de estrelato.

A exposição Sergio Larrain: um retângulo na mão está em cartaz na Galeria 3 do Instituto Moreira Salles, em São Paulo (Avenida Paulista 2424) até 25 de agosto. A mostra começou em Arles, na França, em 2013, e já passou pelo Chile, Argentina e, no ano passado, chegou ao Brasil, em temporada de dois meses no MIS do Rio.

Na edição de São Paulo estão mais de 140 fotografias, vídeo, publicações, entre outros itens, e contempla as diversas fases da produção de Larrain: o começo, em Santiago; as viagens ao interior do país no fim da década de 1950; a fase como membro da agência Magnum até 1978, quando opta pela vida em isolamento. A curadoria é de Agnès Sire.Um dos destaques da exposição paulista é a sala com as edições da revista O Cruzeiro Internacional.

Pablo Neruda e outras imagens inéditas de um 'fotógrafo vagabundo'
  1. O fotógrafo e o poeta
  2. “Uma boa imagem nasce de um estado de graça”
  3. Revista sem fronteiras
  4. Exposição no IMS