O voo de Negona lá da favelinha
Um bailarino rouba a cena ao romper normas e vira filme
O sol nem ensaia despontar no Aglomerado da Serra, quando pontualmente às 5h, o fotógrafo Marcelo Coelho, 56 anos, está de novo à porta do dançarino Welleton Carlos, 21 anos. Minutos mais tarde, na laje da casa onde mora com mãe e irmão, Welleton, ou Negona Dance, rodopia e salta no contra-luz do dia que raia. Na versão final do filme Negona lá da favelinha, documentário musical lançado em pré-estreia esta semana em Belo Horizonte, esta cena vale uma suspensão no tempo. Em câmera lenta, com a vista de tirar o fôlego das casas com muita vida e pouco reboco, Negona voa. E respira fundo.
No filme, Marcelo Coelho, autor do projeto, faz retrato sensível e poético da personagem que nasceu a partir de um apelido. “Quando participei da disputa nervosa a primeira vez, o (professor e idealizador do Centro Cultural Lá da Favelinha) Kdu dos Anjos me disse que seria impossível me chamar de Negão, o nome que eu tinha usado para me inscrever no concurso. Daí virou Negona e eu acho ótimo”, conta, em entrevista ao Estado de Minas.
O corpo de Negona em cena grita, rasga e questiona. Mesmo pesado, flutua. Quando no palco, junto a companheiros de dança, dela flui o inominável e indecifrável magnetismo que alguns já classificaram como élan. Em uma das sequências do filme, em que o grupo de Negona faz uma apresentação no palco de uma indefectível festa de formatura universitária “no asfalto”, a comparação com o rebolado das formandas chega a ser cômica. A fluidez de movimento que nasce no morro não se imita fora dele.
“É um corpo que carrega uma história ancestral de opressão. Não teria como ser de outra forma”, acredita o jovem, para quem tanto faz se vão se referir a ele no masculino, no feminino, chamar de Negão, Welleton ou Negona: todos estão em si. As reflexões a respeito disso começam a tomar forma na trajetória do bailarino, que cursa Dança na Universidade Federal de Minas Gerais. Com o trabalho artístico, Negona dá carne, suor e cor negra e tropical a conceitos que flertam com a obra da filósofa norte-americana Judith Butler, principal referência da teoria queer.
“O corpo no funk tem uma liberdade absoluta. Pode-se ser o que se quer, da forma como achar melhor. Quando comecei (no projeto social Criança Esperança, também na Serra, aos 11 anos), no hip-hop, minha dança ressoava a norma de agir de uma maneira masculina. Era um medo interno, um preconceito que me impedia de tentar novos caminhos de performar, em que eu me sentiria muito mais à vontade”. Tudo mudou quando a pastora da igreja evangélica em que Welleton despontava como uma das jovens lideranças o chamou no cantinho e mandou um “Vai ser livre, meu filho. Se liberta”. Ele entendeu o recado e foi achar o próprio querer - tanto em sexualidade quanto em performance.
A cultura hip-hop vem de um lugar muito machista e no palco é recente o estilo afeminado para esse tipo de dança, conta: “Quando eu comecei a dançar, era marcado o preconceito. E eu tinha medo de ser afeminado e ser repudiado. Optava por esse estilo mais masculino. É uma questão de performance, como defende a tradição do Vogue (dança nascida nas alas gays das prisões norte-americanas, em referência às poses das capas da famosa revista de moda), já incorporado dentre as danças urbanas. Quando percebi que não haveria essa rejeição por parte da minha família e principalmente no ambiente do funk, foi que entendi: eu poderia voar daquela forma”.
O documentário A batalha do Passinho, de Emílio Domingos (Osmose Filmes, 2013) pincela a questão do gesto afeminado no contexto do objeto que enfoca: o surgimento do chamado “passinho foda” nas comunidades do Rio de Janeiro, no começo do século. Muitos dos entrevistados, dançarinos pioneiros no estilo, revelam que descobriram na prática, com base na improvisação diante do público, que incorporar trejeitos com referência direta à “bichice” ou “viadagem” tornara-se recurso infalível para “ganhar” a plateia - quem, naquele espaço democrático, decide tudo, inclusive o vencedor da batalha.
O efeito ali era cômico, mas não havia um tom pejorativo, de acordo com Negona. Com o tempo, esses gestos se tornaram marca desse tipo de passinho, viraram valor - tal qual a subversão termo queer, que surgiu como pejorativo e foi ressignificado. Os gestos afeminados agora fazem parte da performance e são bandeira em um contexto social que compreende o poder de comunicação do funk como quebra-barreiras e preconceitos para além dos morros. “As pessoas te respeitam e há uma ética interna bastante particular”, define Negona, que exemplifica: “Se um mano te ‘zoa’ porque você é gay, um outro mano vai falar com ele: ‘na moral, não vacila’”.
Antes de se encontrar com a reportagem do Estado de Minas para essa entrevista, enquanto aguardava dois pães de queijo e um suco de abacaxi, Welleton praticava um tendu de balé clássico ali mesmo na cantina da Escola de Belas Artes. No tendu, a perna se estende até um ponto e depois fecha; é considerada preparação importante para quase tudo, incluindo o aumento de colo de pé, auxilia no trabalho de subir nas pontas e o equilíbrio em uma perna. “A gente entende que não deve fechar os olhos para nada e o clássico tem uma história importante. Mas é eurocêntrico e isso precisa ser dito, desafiado, desconstruído. É uma briga. Mas é isso que a gente representa quando dobra o esforço e consegue entrar nesses espaços: desconstrução e resistência. Venho de uma realidade que tem muito significante, mas o significado é a gente que faz”.
O curta-metragem Negona lá da favelinha marca mudança de rumo profissional para Marcelo Coelho, cuja carreira internacional na fotografia sempre foi marcada pelo propósito de “revelar o que está além do óbvio”. A produção independente chama a atenção pela qualidade da fotografia (que o próprio Marcelo assina) e também da edição de áudio, do Estúdio Giffoni. A transição para o vídeo, na carreira de Marcelo é a realização de um desejo antigo.
“Além da imagem em movimento e da magia que a música exerce em sincronia com a imagem, sempre tive um fascínio enorme por contar histórias. E o vídeo é uma plataforma excelente para isto”, diz o documentarista. O filme de estreia dele foi um projeto autoral, gravado com telefone celular, Burning Man, que fez carreira em festivais internacionais. Com Negona..., o planejamento foi maior e também a rede de parcerias para viabilizar o projeto.
Marcelo conta que tem como referências videomakers independentes, principalmente da Europa e Estados Unidos, cuja produção é focada na abordagem autoral de um tema real. “São vídeos sem objetivo comercial ou institucional, que apresentam situações, lugares ou personagens reais do nosso cotidiano de uma forma artística e inspiradora”, define. A pré-estreia foi em 9 de maio de 2019, no Mercado Distrital do Cruzeiro, e agora o filme segue para submissões em festivais de curtas nacionais e internacionais.
Curiosamente, quando começou há 25 anos a trabalhar com fotografia em Los Angeles, Marcelo chegou a participar de projetos de vídeo como cameraman - incluindo o clipe da música Strong Enough, da cantora Cher, ícone queer pop atemporal. Com Negona lá da favelinha, outro jovem ícone queer reflexivo do discurso de força e poder a partir da desconstrução de normas está novamente diante das lentes de Marcelo.