Hildas de hoje
A realidade e as fantasias das prostitutas da Guaicurus, 25 anos depois do livro de Roberto Drummond
Belo Horizonte soube primeiro, o Brasil demorou para descobrir. Nunca houve uma mulher como Hilda. Há 25 anos, o jornalista e escritor Roberto Drummond (1933-2002) mergulhou em universo de desejo e saiu de lá com uma personagem envolta em nuvem de mistério e sensualidade. Em abril de 1991, Drummond concluiu seu mais famoso romance. Pelas palavras do escritor e depois pelas imagens da TV,o país se encantou por Hilda Furacão. Na ficção e na realidade.
A personagem, inspirada em Hilda Maia Valentim, foi desejada por pobres, ricos, santosepecadores. Conhecida na classe média alta belo-horizontina, ela desnorteou a tradicional família mineira ao se tornar a prostituta mais famosa da Rua Guaicurus, nos anos 1960. Chegou na zona boêmia em 1º de abril de 1959 para se hospedar no quarto 304 do Maravilhoso Hotel e por lá ficou até 1º de abril de 1964. Por duas vezes, no dia da mentira. Coincidência ou destino
Embora pareça obra da ficção, a verdade é que Hilda nunca se foi.
Vinte e cinco anos depois do lançamento do livro Hilda Furacão, o Estado de Minas seguiu os passos de Roberto Drummond e retornou à Rua Guaicurus atrás das mulheres que, décadas depois da garota do maiô dourado, continuam a satisfazer os desejos dos homens. Por dois meses, a reportagem frequentou os hotéis da zona boêmia. Lá, como no romance, a imaginação e a realidade se confundem.
Já não há mais glamour, muito longe disso. Mas a Guaicurus resiste ao tempo e mostra que a narrativa ficcional se mantém viva na atualidade. Atravessa, por gerações, a vida de mulheres de carne e osso. Hilda está na personalidade forte de Susi, que largou a vida com os pais na Pampulha para morar no Novo Hotel, o antigo Maravilhoso. A voz de Hilda ressoa na fala de Thamires, que não determina a linha que divide o real do fantasioso.
A fama da personagem se mantém em Sarug, prostituta, transexual e psicóloga que se tornou figura reconhecida e uma referência nos novos tempos de Guaicurus. Aliás, Sarug mostra que, na atualidade, ser Hilda não é necessariamente ter nascido mulher. Assim como na ficção, cinco anos foi também o tempo que a socióloga Tati estabeleceu para ganhar dinheiro no mercado do sexo.
O perfume marcante da personagem de Drummond se espalha no quarto de Daiane, que acolhe os clientes com doçura, apesar de estar grávida de cinco meses. Invade as histórias contadas por Laurinha, há mais de três décadas trabalhando na Guaicurus, e continua alimentando o sobe e desce nas escadarias dos hotéis da zona boêmia. Nos relatos de outras, Hilda revive. O mistério permanece.
‘‘Não dou liberdade. Faço eles sofrerem’’
A ‘novinha do Novo Hotel’ é a sensação do antigo lar da musa de Drummond
Homens de todas as classes sociais sobem as escadas do Novo Hotel. Espremem-se pelo corredor, chegam ao terceiro andar e param à porta do segundo quarto à direita, onde a moradora diz ser completamente profissional, o que inclui aí uma restrição: não se apaixona. Susi, de 21 anos, tem longos cabelos pretos, corpo esguio e definido, olhos amendoados, rosto juvenil e personalidade forte que aflorou depois dos seus estudos em escola militar. “Não dou liberdade. Se um cliente me irritar, sai do meu quarto sem roupa”, avisa.
Furacão? Já ouviu falar da “tal moça” que virou minissérie na TV, mas não tem interesse algum nessa história. Tampouco reconhece ter algo em comum com Hilda. Mas a primeira coincidência entre elas é que a personagem de Roberto Drummond trabalhou no Maravilhoso Hotel, que há uma década virou Novo Hotel, no Hipercentro de BH. E é justamente no terceiro andar, onde Hilda levava os homens à loucura, que Susi hoje é “a novinha”, assim chamada pelos clientes.
Numa tarde de sexta-feira chuvosa, ela, vestida de short e camiseta preta básica, abriu a porta do quarto do hotel somente às 17h, ainda com a cara de sono – ressaca da balada na noite anterior. Correu para um bar na Rua Guaicurus, comprou uma marmita com macarrão na chapa. No corredor do hotel, retirou um refrigerante em lata da máquina de venda. Entrou para o quarto e fechou a porta. Sem maquiagem ou lingerie, cruzou as pernas sobre a cama, e, entre uma garfada e outra de macarrão, respondia às mensagens de clientes e amigos no WhatsApp. “O que querem saber?”, indaga à reportagem do Estado de Minas.
E, ali, havia o mistério que Roberto Drummond tentou, sem sucesso, desvendar de seu personagem. A dúvida é a mesma quando se trata de Susi: o que levou a garota de classe média a largar a vida com os pais na Pampulha e os estudos no Colégio Tiradentes?. A bela, filha de um advogado e militar e de uma empresária, ambos da igreja evangélica, não tem resposta única. Dá voltas. Ora faz entender que foi em busca da independência financeira, ora fala sobre antigo relacionamento que não deu certo. Mas não justifica a situação para a escolha. Revela que foi estuprada aos 5 anos e aos 12 por um parente que frequentava a casa dos seus pais. Guarda no peito o ódio pelos homens. “Faço eles sofrerem. Só vou ficar satisfeita quando ‘ele’ morrer.”
SEM MIMIMI É aí que a personagem e a realidade se confundem. Apesar de a dama de Drummond dizer amar os “deserdados do mundo” e Susi afirmar não ter “esse mimimi de carinho”, ambas nunca sentiram prazer nas relações. Em conversa com Drummond, Furacão chegou a mencionar que fingia tudo. “Nunca senti nada, eu fingia, beijos fingidos, orgasmos fingidos, alegria fingida.” Susi diz o mesmo e vai além. “Sou profissional, praticamente um robô. É tudo automático.”
No amor, as duas se encontram novamente. Hilda teve uma paixão proibida por um frei que lhe deixou marcas. Susi guarda na memória o ex-namorado, o único que amou e, que, agora, quer vê-lo pagar pelo seu sofrimento. Traz na perna uma tatuagem com as inicias do jovem. “Mas ele vai sofrer”, promete, rancorosa, sem dar detalhes sobre o fim da relação.
Susi trabalhou desde os 15 anos como cabeleireira em BH e, aos 18, diz ter perdido o emprego. Na época, morava com o namorado e, em casa, assistindo à TV, viu uma reportagem sobre a Miss Prostituta na Guaicurus, oque mudou sua vida. “Falei com ele (ex-namorado): estou indo. Ele não acreditou. Mas no meu primeiro dia, cheguei em casa com R$ 700 no bolso”, orgulha-se. O primeiro caminho foi em casa de massagem com garotas de programa de alto luxo.
SEM VOLTA Ficou lá por dois anos, engravidou – assunto que deixa como mistério. Depois, foi para a Guaicurus. “Eu vim porque quis. Ninguém me trouxe, não conhecia ninguém que era garota de programa. Vim por intuito mesmo. Depois disso, não consigo parar de trabalhar aqui”, conta. Susi mora no quarto do Novo Hotel, mesmo depois de ter comprado uma boa casa na capital. Trabalha de segunda a segunda, das 8h à meia-noite. Como cabeleireira, ganhava cerca de R$ 1,2 mil por mês. Hoje, fatura em torno de R$ 1 mil por dia e paga R$ 220 pela diária do quarto onde mora. Seus pais sabem da sua escolha, não aprovam e pedem à filha para parar. Não se falam. Mas Susi decidiu: “Não quero largar”. (Luciane Evans)
“Como cantou Sérgio Reis, ‘panela velha é que faz comida boa’”
Veterana se sustenta com programas há 30 anos e diz que, aos 58 anos, trabalha para espantar o tédio
Uma mulher comum. É assim que Laurinha, de 58 anos, se define. Há mais de três décadas trabalhando na Guaicurus, ela conta que foi parar na profissão por amor à filha. Natural do interior de Minas, ela engravidou ainda nova e sua família não aceitava uma gravidez sem casamento. “Diziam que mãe solteira era prostituta”, conta. O pai da criança não quis assumi-la, e, entre ficar com a menina ou ter o respeito da sociedade, ela se agarrou à primeira opção e encontrou na prostituição a felicidade: estudou a filha, que mora hoje na Europa; amou e foi amada; e consegue fugir do tédio e da solidão quando se dispõe a dar carinho aos homens, como ela mesma diz.
Laurinha, assim chamada na Guaicurus, é a soma das várias Hildas que permeiam o imaginário mineiro. Passou pela fase em que foi sucesso na Zona, com fila de homens à sua espera. “Era nova e bonitinha quando cheguei. Meu quarto parecia até jogo do Atlético e Cruzeiro, fazia fila”, recorda, às gargalhadas. Hoje, ela já não espera o cliente com lingeries provocantes. Prefere usar vestidos, mais elegantes. Tem clientes antigos, que a procuram. “Essa profissão tem dois lados: você adquire muitas coisas, mas tem que saber lidar com todo mundo”, ensina.
Na obra de Roberto Drummond, Hilda Furacão abandona a vida da Guaicurus no 1º de abril de 1964, na esperança de fugir com Frei Malthus, o homem que certamente havia, enfim, lhe despertado o amor. Mas foi a felicidade quem ‘passou um 1º de abril’ em Hilda: a heroína teve de ir embora sem o frei e tempos depois, soube-se que morreu, em um asilo, na Argentina. “Ela se casou com ex-jogador do Atlético que a deixou na miséria. Morreu sozinha”, conta Laurinha, repetindo a história descoberta e acompanhada pelo Estado de Minas.
Laurinha passou por situações semelhantes à de Hilda. Ela conta que, uma vez, um cliente canadense se apaixonou por ela e frequentou seu quarto por cinco anos. “Até que um dia, ele prometeu me levar para o Canadá. Ia me buscar e tudo mais”, recorda. Mas, com receio do que seria viver com uma filha em um país diferente do seu, ela não arriscou. “Hoje, me arrependi. À época, ele ficou com raiva de mim por não ter ido. Era um homem maravilhoso, mas eu não sabia o que me esperava e não sou mulher doida: pela minha filha, sou capaz de matar ou morrer”, afirma.
O tempo passou, a filha de Laurinha estudou em três faculdades e, atualmente, está na Europa cursando geografia. Nunca perguntou nada sobre a profissão da mãe. O dinheiro que ganha Laurinha manda para ela. “Aqui, você não precisa ter beleza nem idade. Tem que ter talento”, explica. Envelhecer na profissão não tem mistério para ela. “Ás vezes sou psicóloga dos meus clientes. Alguns vem aqui só para conversar comigo”, diz. Laurinha gosta e se sente feliz em ser prostituta. “Tem que ter persistência, não é fácil deitar com um, com outro. Mas, valeu a pena. Bato no peito e tenho orgulho de ser quem eu sou”, diz, acrescentando que já tem sua casa, ganhou mais dinheiro que um engenheiro ou advogado, mas por enquanto pretender ficar na Guaicurus por mais quatro anos. “Se eu sair daqui, vou morrer de tédio. Como cantou Sérgio Reis, ‘panela velha é que faz comida boa’”, conta, aos risos. (Luciane Evans)
‘‘A gente é um conto de fadas para eles’’
Experiência de ser rainha do próprio corpo dentro de um templo de fantasias
São 15h de quinta-feira. O comércio no Baixo Centro está movimentado. Passageiros aguardam seus ônibus nos pontos e ambulantes oferecem pendrives e correntinhas aos pedestres. O sobe e desce incessante na escadaria do Hotel São Paulo, quase esquina com Guaicurus, aponta que, enquanto a vida corre, o mercado do sexo não pode parar. Há jovens, idosos, maltrapilhos e bem vestidos. No último quarto à direita do corredor amarelo e azul, a toalha pendurada na porta indica: “Thamires Loira R$ 20,00.”
“Nua, sentada na cama, os seios empinados, um meio sorriso prometendo não apenas loucuras, mas muito mais: prometia a felicidade.” Thamires se apresenta exatamente como o escritor Roberto Drummond descreveu Hilda Furacão na foto que mais fazia sucesso entre os clientes da lendária prostituta dos anos 1960. “Como querem me entrevistar?”, pergunta. Enrolada numa toalha branca e sem descer do salto de 18 centímetros, ela está pronta para falar. Ao fundo, as caixas de som do hotel ecoam Evidências, sucesso de Chitãozinho & Xororó. “Quando eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo.” Foi a separação do marido que a levou para a prostituição. Começou a atender clientes por telefone, depois trabalhou no ABC Paulista até ir para a Espanha, onde ficou por sete anos. “Nunca ganhei tanto dinheiro”, diz. Entre idas e vindas, são mais de duas décadascomoprofissional do sexo. Há seis anos, começou a trabalhar na Guaicurus e, desde 2012, mora no Hotel São Paulo.
Com voz suave característica das damas, Thamires acolhe clientes dia e noite a R$30 o programade até 15 minutos – o preço escrito na toalha pendurada na porta está desatualizado. Atualmente, fatura R$ 600 por dia – sem descontar a diária de R$ 130 do quarto. O trabalho pesado está distante do glamour com que Hilda Furacão recebia coronéis e homens da sociedade no Maravilhoso Hotel. Mas, aos 46 anos, Thamires se impõe no quarto como uma rainha. Não abre mão de alguns luxos, como um sabonete de qualidade, a roupa de cama trocada a cada três clientes, odorizador para perfumar o ambiente(artigo que considera estratégico em programas com homens malcheirosos) e cremes hidratantes.
No quarto de luz azulada, com cama de alvenaria e banheiro cujas paredes não chegam ao teto, divide sentimentos antagônicos. Ora sente-se um “objeto”, ora alguém “muito importante”. “Às vezes, me sinto uma máquina. Mas aqui tem muita carência e você faz bem às pessoas. Ninguém é obrigado a vir”, diz. A música continua. “Mas para que viver fingindo/Se eu não posso enganar meu coração.” O coração dela está fechado. Namorou o gerente do hotel, largou a prostituição para trabalhar como faxineira, mas o romance não foi pra frente. Depois disso, nunca mais se apaixonou. “A vida na prostituição te faz deixar de confiar no ser humano”, comenta.
Ela tem pressa na entrevista, um cliente antigo mandou mensagem avisando que está vindo. “Aqui chega de tudo e sempre trato bem. Tem aquele homem, por exemplo, que acabou de sair da cadeia. A gente é um conto de fadas para eles”, afirma. Aos poucos, vai revelando que, tal qual Hilda Furacão, é também protagonista de uma fantasia. “A Thamires nasceu de uma personagem. É como Alice no País das Maravilhas”, diz.
Fora da Guaicurus, Thamires tem outro nome, que não revela por nada. Da sua vida real a loira conta pouco. Os três filhos–um menino de 27, outro de 25 e uma menina de 22 – sabem da atividade da mãe. A filha sente orgulho. Um ou dois dias na semana, Thamires dorme no apartamento que comprou em Venda Nova, em BH. Conversa pouco com os vizinhos e prefere descansar em meio aos mais de 300 vidros de perfume e 400 pares de sapato. “Esse dinheiro da prostituição vai embora fácil”.
TRABALHO E FÉ Na Guaicurus, mantém uma rotina disciplinada. Começa a trabalhar de manhã, depois de ler a Bíblia. Nos programas, deixa a silhueta corpulenta e tatuada à mostra e só não se despe da imagem de São Jorge Guerreiro e Nossa Senhora pendurados na correntinha. “Aqui eu chamo o homem de lindo, meu amor, mesmo que não seja nada disso”, afirma, reforçando a nuvem de fantasia que paira sobre a Guaicurus.
Os casados são frequentes em seus lençóis. “E o que épreciso fazer para que os maridos não venham?”, pergunta a repórter. “Me liga que eu te dou umas dicas”, disse Thamires. Dias depois, no WhatsApp, ela informou que estava ocupada trabalhando. O telefone tocou várias vezes até cair na caixa postal, que tinha como música de fundo abalada romântica do sertanejo Zé Felipe. “Você mente quando diz que está em outra e não quer mais voltar/Você mente que não sente mais saudade deixou de me amar”. (Flávia Ayer)
‘‘Meu marido trabalha para mim’’
Grávida de cinco meses, jovem de 20 anos sustenta a família e sonha ser empresária
“Já no corredor sentia-se o cheiro adocicado do perfume preferido por Hilda Furacão: o Murguet du Bonheur”, descreveu Roberto Drummond. Vinte cinco anos depois da obra do escritor chegar às mãos dos leitores, ainda há perfumes doces que invadem os corredores do Novo Hotel (antigo Maravilhoso Hotel). Desta vez, vêm do quarto de Daiane, de 20 anos. Sentada sobre a cama, ela se abana com o leque preto de renda à espera de clientes, com o frescor de quem saiu do banho. Usa saia rodada vermelha, sapato alto da mesma cor, top colorido e maquiagem nos olhos que dá mais maturidade ao rosto juvenil. Carrega, sem esconder, uma particularidade: está grávida de cinco meses. “Os clientes não reclamam. É normal”, garante.
A jovem de voz mansa está na Guaicurus desde os 18 anos, quando teve uma filha. Agora, ela e o namorado resolveram ter mais um bebê. “Ele era um cliente meu e nos apaixonamos. Moramos juntos há um ano emeio”, conta, feliz. O fato de estar grávida de um menino (ela ainda não sabe o nome que dará à criança) não incomoda Daiane. Aliás, a única coisa que a irrita é justamente cheiros. Como o seu quarto é o mais perfumado do hotel, ela não permite que homens com odores fortes sejam seus clientes e pede, gentilmente, para que se retirem de lá. “A Guaicurus é uma ‘zona organizada’”, explica.
Apesar de expulsar do seu antro aqueles que não estão cheirosos, ela tem um carinho especial por cada cliente. Daiane mostra doçura quando se refere aos homens que a procuram. “Tem aqueles que são fixos e voltam todos os dias”, diz, orgulhosa. Ela diz que sente prazer em algumas relações, apesar de nunca ter confessado isso ao namorado. Em respeito a ele, a jovem diz nunca fazer sexo com os clientes sem proteção e jamais permite lhe beijarem. “Nem por R$ 1 milhão”, enfatiza.
PROVEDORA Enquanto ela trabalha, ganhando por dia até R$ 1,5 mil, o namorado é o “dono de casa”. É ele quem cuida da outra filha de Daiane, faz as compras e resolve todas as pendências do dia. Para a jovem, foi melhor assim: “Meu marido trabalha para mim. Antes, eu tinha que pagar os outros para olhar a minha menina. Hoje ele é o ‘dono de casa’ e eu sou a provedora.” Durante muito tempo, Daiane passou a gastar tudo que ganhava e, quando precisava adquirir algum bem, trabalhava mais tempo na Guaicurus. “Minha família sabe dessa minha escolha e já até me pediu dinheiro emprestado. Hoje tenho uma vida boa”, afirma.
Quando criança, Daiane pensava em ser dançarina de boate. Hoje, cuida do corpo em aulas de pole dance e musculação. Frequenta rave e já levou todos os amigos à festa baiana chamada Universo Paralelo. “Gastei R$ 200 mil. Sempre tive muito disso, de bancar as pessoas. Não faço isso mais.” Ela pretende um dia largar a profissão e montar lojas de roupas na capital. Por enquanto, sabe que terá de deixar o quarto vago por uns dias para a licença-maternidade. “Ficarei dois meses fora e depois volto”, avisa, sorrindo. Quando questionada sobre o livro de Drummond, ela responde: “Hilda Furacão? Sei sim. É uma boate que tem na BR-040?. Fui lá um dia, mas não gosto.” Ao saber da famosa personagem da literatura e do passado da Guaicurus, Daiane diz nunca ter ouvido falar da mulher para quem o perfume marcou a vida de muitos. (Luciane Evans)
‘‘Quero deixar um legado para a sociedade’’
Assim como a personagem, a socióloga fixou prazo para deixar a Guaicurus
O maiô não é dourado como aquele que Hilda Furacão usava à beira da piscina do Minas Tênis Clube antes de se tornara prostituta mais famosa da capital mineira no livro de Roberto Drummond. A peça de cor branca e transparência valoriza mais a pele morena de Tatiana Vieira, de 27 anos. Ela solta os cabelos cacheados, tira a calça jeans, põe brincos dourados, sobe nas sandálias de salto fino e, aos poucos, vai deixando do lado de fora do quarto da Rua Guaicurus a aparência da sociólogaeprofessora da rede estadual de educação. Na zona boêmia de BH, a jovem é apenas Tati.
Em suas próprias palavras, Tati é mulher “com jeito de garota”. Seios pequenos, corpo mignon, 1,50m de altura, coxas grossas. A sensualidade esconde a intelectual formada em sociologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e com mestrado não concluído na mesma instituição. Com o grande parte das mulheres que trabalham ali, Tati não é mineira. Nasceu no Pará e cresceu em família de classe média, mãe filósofa e pai técnico de pavimentação de estradas. “Eu era uma patricinha”, comenta.
Depois de crise de estresse no mestrado, aceitou o convite de uma amiga e, em 2013, mudou-se para BH para espairecer. A temporada mineira trouxe novas experiências profissionais. Primeiro, o telemarketing, depois, aulas de sociologia em escolas públicas. E, no meio disso, a prostituição. “Briguei com a minha amiga e fui morar sozinha. Teve um dia que o dinheiro não dava. Fiz anúncio em site de encontros casuais e, em uma semana, fiz R$ 1 mil”, lembra. A descoberta da Guaicurus ocorreu este ano, como opção mais segura em relação à prostituição pela internet.
A mãe e os quatro irmãos continuam no Norte do país. Opai, seu melhor amigo, faleceu em fevereiro. A morte dele mexeu com a garota. E, diferentemente da Hilda Furacão das páginas do escritor Roberto Drummond, Tati não quer mais ser um mistério. Pelas lentes do Estado de Minas, ela mostra o rosto pela primeira vez, se despe do medo da rejeição e assume para a família e a sociedade a atuação profissional no mercado do sexo.
“Estou usando meu corpo como meu instrumento de trabalho. Assim como uso meu intelecto na atividade acadêmica. O que tenho é um foco: pegar o dinheiro e investir na minha carreira”, afirma. A feminista, que não via com bons olhos o sexo pago, desvestiu-se também dos preconceitos. “Há muitas mulheres guerreiras aqui, que têm filho, casa e não querem ser sustentadas por marido”, diz Tati, que preza por sua independência, acima de tudo. “Não é glamour nem vitimização da mulher. Para mim, é trabalho”, ressalta.
LIBERAL Apesar do jeito aparentemente contido, ela sempre gostou de transar e nunca foi de reprimir desejos. Nem por isso topa tudo. A camisinha, inclusive, é artigo obrigatório e, preocupada, faz exames periódicos contra Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “Já barrei homens, mas não dá para escolher muito”, diz a jovem, que concilia a Guaicurus com as aulas numa escola estadual e a especialização no ensino da língua inglesa. “O salário de R$ 1,4 mil de professora não dá para pagar aluguel, as contas e a especialização”, reforça. Sem falar na musculação e ioga para manter a forma. Embora bem resolvida com as escolhas da vida, Tati não nega uma certa frustração. “É muita batalha do meu pai, da minha mãe, são muitas horas de estudo para eu não conseguir por meus méritos uma vida digna dentro da profissão de socióloga”, diz. Mas ela nunca deixa a pesquisadora de lado. “Você tem o livro Hilda Furacão para me emprestar?”, pergunta Tati à repórter do EM.
Ela está assistindo a documentários e lendo livros para desvendar sua profissão. Um trabalho que tem prazo de validade: cinco anos. Coincidência ou não, Hilda também estabeleceu que se prostituiria por cinco anos e nem mais um dia. Para Tati, é o tempo suficiente para juntar mais dinheiro. Dali em diante, não alimenta sonho de casamento ou filhos. Também não pensa em voltar para o Pará, onde vive um rapaz que faz seu coração bater forte. “Quero escrever, quero publicar, quero deixar um legado para a sociedade. Quero ajudar a construir uma sociedade não preconceituosa. E isso tem que começar por nós.” (Flávia Ayer)
‘‘A grande pérola da prostituta é acolher e escutar’’
Transexual divide a cama e a vida acadêmica entre prostituição e psicologia
Deitada em lençóis brancos da grife M. Martan e encostada nos seis travesseiros, Sarug Dagir está toda nua. Com uma mão, envolve uma almofada roxa em frente ao colo. Com a outra, segura a apostila que reúne a obra Inibição, sintoma e angústia, de Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise. Como o movimento está fraco, ela adianta a leitura dos textos do doutorado. Sarug, com seu 1,80m e 38 anos, não cabe em definições simplistas. Transexual, psicóloga, mestre em literatura, doutoranda, casada, professora universitária e “puta”, como gosta de ser chamada nas imediações da Rua Guaicurus.
Era nosso segundo encontro para esta reportagem e, assim que me viu, Sarug pediu que eu entrasse e fechasse a porta do quarto que aluga no Hotel São Paulo. Enquanto conversava, pôs um vestido comportado comprado em loja de madame. “Em sua origem, a puta é a sacerdotisa dos templos sagrados. Tento buscar esses elementos com o lençol sempre branco, as flores, o abajur, faço um resgate da sacralização da prostituta”, argumenta. Em frente à cama, uma mesinha rodeada por duas cadeiras, balas para os clientes e um armário de madeira de demolição.
Ali ela acolhe os deserdados do mundo, assim como a personagem de Drummond. “A grande pérola da prostituta é acolher e escutar. O cliente sai melhor do que entrou. Às vezes, ele vem só para conversar. Não estou atuando como psicóloga, mas procuro trazer mais humanidade ao atendimento. Quero ajudar as pessoas”, diz Sarug, que estuda no doutorado em psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) o efeito terapêutico da prostituição.
Tal qual Hilda, a baiana é filha da classe média alta. Mudou-se de Salvador para BH para estudar psicologia. Aplicada, aprendeu alemão para ler Freud e grego para ler Platão. Além de se aprofundar nos estudos, mergulhou dentro de si até reconhecer sua identidade. Foi quando “o Sarug”, nome árabe que significa ‘amigo’, passou a ser “a Sarug” – não fez a cirurgia de redesignação sexual, pois quer preservar sua “singularidade”. A prostituição veio na carona e, no século 21, ela mostra que ser Hilda não se traduz em ter nascido mulher. Somente na Guaicurus, são três hotéis voltados somente para as trans. “As travestis e transexuais estão enclausuradas na prostituição”, comenta Sarug, criticando a dificuldade de inserção no mercado de trabalho.
DIÁRIO DE ALCOVA Logo depois de concluir o mestrado, já transexualizada, há cerca de 10 anos, Sarug perdeu os benefícios estudantis. “Comecei a passar fome. Um amigo antropólogo me sugeriu a prostituição. Tinha preconceito, mas passar fome não é brincadeira”, conta. Ela foi para a rua e topava programas por R$ 5 ou R$ 10. “Cada dia ia a campo, chegava em casa e escrevia um diário etnográfico”, diz, enquanto ajeita uma sacola. No diário, relata casos de clientes, fala de uma surra que levou dos travestis e da “cafetinagem” ainda existente.
A chegada à Guaicurus foi uma questão de tempo e a permanência, uma questão de gosto. “A gente tem de fazer o que gosta. Tem que gozar. A prostituição trouxe também méritos de me conhecer melhor”, afirma. Hoje, ela concilia a atividade com as aulas em universidades e os estudos. Nos programas, conheceu também o amor. Há cerca de dois anos, Sarug se casou com um cliente “Ele não conhecia o mar, roda-gigante. Fui me encantando pela sua ingenuidade”, diz.
O marido trabalha como açougueiro e nunca havia transado com uma transexual. Apaixonou-se por ela, casou, mas não concorda que a mulher continue na zona. Sarug encontrou um meio-termo e, para agradar ao marido, fica na Guaicurus até as 15h. Já são quase 16h. “Tenho que me preparar para um seminário na universidade e daqui a pouco estou indo embora para fazer a janta para meu marido”, diz, ansiosa. “As trans sofrem esse estigma de ser mulher na condição de passar, lavar, cozinhar”, afirma. Daqui para frente, ela ainda não definiu o rumo da vida. Mas talvez transforme tudo isso em um livro. De onde estiver, Drummond agradece. (Flávia Ayer)
A realidade dentro da ficção
O mito que viveu no glamour dos anos 1950 morreu na solidão de um asilo
“Um boato festivo, colorido, maravilhoso...”, dizia Roberto Drummond, quando questionado sobre a existência, ou não, da mulher que mexeu com o imaginário nacional. Mestre em mesclar realidade e ficção em seus romances, o escritor dizia que a personagem existiu, mas foi mitificada e mistificada. Na obra, ela se despede da história em uma conversa com Drummond em Buenos Aires, longe da vida agitada da Guaicurus. E recomenda: “Por que você não diz aos seus leitores que, tal como contou no seu romance, eu, Hilda Furacão, nunca existi e sou apenas um 1º de abril que você quis passar nos seus leitores?”. O escritor não acha a ideia de todo mal.
Durante muitos anos, a dúvida e os mistérios dessa obra repercutiram na imaginação popular. Hilda virou lenda, mito, boato e inspiração para mulheres na Guaicurus. E, até hoje, algumas profissionais que chegam ou estão ali há tempos dizem saber um “pouquinho (ou muito) dessa história”. Do livro nasceu a minissérie de TV adaptada por Glória Perez, em 1998, e também deu origem a musical no teatro, em 1997. Até que, em julho de 2014, ainda sem pistas do quanto Drummond usou de ficção ou de realidade, o Estado de Minas encontrou a verdadeira Hilda. Aos 83 anos, a mulher conversou com a reportagem em um asilo em Buenos Aires, sem glamour ou luxo, nem resquícios da vida na zona boêmia de BH. Aliás, a Rua Guaicurus não existia mais na memória dela. “O meu apelido, de Furacão, é antigo, porque eu era brigona. Se mexessem comigo, estourava, discutia, queria bater. Sou assim desde pequena”, disse, na época, com exclusividade, ao repórter Ivan Drummond, do EM.
Hilda Maia Valentim, assim batizada, morreu no fim de 2014. Já estava debilitada e confusa mentalmente, e faleceu sozinha no asilo mantido pela Prefeitura de Buenos Aires. Em seu enterro, compareceram apenas três pessoas. Um destino, sem dúvida, inimaginável pelos leitores de Drummond. E é aí que a ficção e a realidade entraram em conflito novamente.
A Hilda Furacão descrita pelo escritor chegava à zona boêmia de BH em 1º de abril de 1959 e se hospedou no quatro 304 do Maravilhoso Hotel. Na obra, a mulher, de beleza estonteante, era figura frequente na piscina do tradicional Minas Tênis Clube. “Ela era bela, inesquecível moça”, escreveu Drummond, que revela o nome completo da musa; Hilda Gualtieri von Echveger, filha de mãe italiana e pai alemão. No Minas Tênis, usava o maiô dourado, o que permitiu ao escritor chamá-la, carinhosamente, de a Garota do Maiô Dourado.
Encarregado de descobrir o porquê de a menina da Zona Sul ter largado a boa-vida, Drummond relata em sua obra que até um poderoso banqueiro fez de tudo para se casar com Hilda, mas ela recusou e, alguns dias depois, foi para a zona boêmia. Para a nova moradora da Guaicurus havia filas, os homens a veneravam e até mesmo um frei foi contaminado pelo que Drummond denominou de Mal de Hilda. Um amor que, correspondido pela protagonista, ficou na imaginação. A garota do maiô dourado abandona a vida na Guaicurus, em 1º de abril de 1964, e, no livro, se reencontra com Drummond, tempos depois, em Buenos Aires, e sugere ao autor fazer da sua história uma brincadeira do Dia da Mentira.
A verdadeira Hilda, de fato, deu vida à literatura sem ter vivido o que a imaginação do escritor mineiro eternizou. A Furacão existiu, mas não era rica, nem sequer chegou perto do Minas Tênis Clube. Aliás, morreu sem saber onde era o clube. Hilda foi mulher de Paulo Valentim, um dos grandes ídolos do clube argentino Boca Juniors, que a conheceu na zona boêmia, nos anos 1950. Ele jogava no Atlético e era frequentador dos bares da região. Um dia foi ao quarto de Hilda, passou a procurá-la sempre, e se apaixonou.
MATRIMÔNIO Como bebia muito e era briguento, Paulo Valentim passou a ser um problema para a diretoria atleticana. O fato acelerou a venda do jogador para o Botafogo, em 1957. Foi para o Rio, mas a cabeça continuou em Hilda Furacão. Dizem que, ao fim de um jogo, ele pegava um ônibus para se encontrar com a amada. Tanto foi que decidiu se casar e a levou para a cidade natal dele, Barra do Piraí (RJ). Hilda dizia que, antes de se casar com Valentim, chegou a trabalhar em casa de famílias como empregada doméstica.
Ele jogou com Garrincha, Didi e Zagallo, no Botafogo. Foi para a Seleção Brasileira e esteve ao lado de Pelé. Depois, foram para Argentina, onde defendeu o Boca Juniors. O casal tinha uma vida de luxo. Mas, com a bebida e o vício no jogo de cartas, Valetim ficou na miséria. E o casal acabou morando de aluguel ou de favor. Em 9 de julho de 1984, Valentim morreu em consequência da bebida. Hilda teve um filho com ele, Ulisses, que morreu em 2013, por causa de diabetes.
Hilda passou a viver com a nora, Teresa Ignes Rodríguez. Um dia, Ignes chegou em casa e encontrou a sogra desmaiada. Tinha batido com a cabeça no chão. Depois de medicada, logo em seguida levou outro tombo, com outro corte na cabeça. Levada para o hospital em Buenos Aires, ela foi tratada e, como não podia ficar, foi para o asilo, onde morreu entre as lembranças e a solidão. (Luciane Evans)
Como encontrei Hilda Valentim
Por Ivan Drummond
E tudo começou com um presente de um jornalista amigo de meu pai. Fui visitar Jáder de Oliveira, que vivia na Inglaterra, mas estava em visita a BH. Conversa vai, conversa vem, entre um caso e outro, ele fala sobre Paulinho Valentim. Comenta sobre o livro de Roberto Drummond, Hilda Furacão. Comento que gostaria de fazer uma reportagem inusitada sobre o casal. Ele pega uma mala e de lá tira um retrato. É o casal, quando vivia em Buenos Aires e ele jogava no Boca Juniors. Isso foi em 2003.
Vasculho o passado e conto uma história do amor de Paulinho e Hilda. O tempo passa. É véspera da Copa do Mundo de 2014. Estou em Sete Lagoas, para cobrir o Uruguai, ali concentrado. Uma noite, um telefonema. É um amigo de meu pai, Washington Melo, também jornalista, que me pergunta se pode passar meu telefone a uma amiga, do Rio. Explica que não é ela que quer falar comigo, mas uma amiga.
Sim, respondo. Na manhã seguinte, o telefone toca. Do outro lado, uma mulher, Marisa Barcello. É capixaba e diz que mora em Buenos Aires. Pergunta-me se fui eu mesmo que escrevi a matéria de 2003. Digo que sim e ela dispara: “Pois eu estou com a Hilda aqui, no asilo onde trabalho, em Buenos Aires”.
Fico doido. Quero ir a Buenos Aires, mas isso só seria possível depois da Copa. O Brasil perde para a Alemanha, é goleado. A viagem é liberada. Vou no dia seguinte. Chego ao Hogar de Ancianos Guillermo Rawson. Lá está Hilda, numa cadeira de rodas, assistindo à TV. Sorri. Só tem um dente, na parte de cima da boca. Falo que sou de BH e por alguns instantes ela se recorda da cidade. Começa a falar de seu amor, Paulinho Valentim, da vida que levavam, de joias, que não tem mais. Que descoberta!
O tempo passa. É dezembro de 2014. O telefone toca novamente. É Marisa, de novo. “A Hilda morreu. Será enterrada amanhã, no Cemitério Municipal aqui de Buenos Aires.” É o fim da vida carnal. No sepultamento, apenas ela, uma funcionária da embaixada brasileira e um médico do asilo. Chego à conclusão: “Fui o último a falar com ela. A mulher que se tornou um mito não existe mais. Sofria de Alzheimer. Mas tinha momentos de lucidez. Contou parte de sua história, suas poucas lembranças. Acho que o adeus foi quando o jornal noticiou a sua descoberta.”
“Hilda Furacão sofre de um sadomasoquismo doentio e incurável, por isso é que, como falam, “desceu a ladeira” e foi para a zona boêmia.
Ela adora se fazer de vítima e foi para a Rua Guaicurus exclusivamente por uma compulsão que Freud explica.
No fundo do coração, Hilda Furacão é profundamente religiosa e deu a si mesma a penitência de ser prostituta.
Ela ficou muito traumatizada quando, aos 15 anos, o primeiro namorado suicidou-se por sua causa e desde então decidiu punir-se optando, mais tarde, por ser prostituta.
Tudo não passou de uma necessidade financeira: o pai da Garota do Maiô Dourado, ao contrário do que parecia, vivia grandes dificuldades.
Hilda Furacão tinha grande competição com as primas, por isso, para ficar mais rica que elas, foi para o Maravilhoso Hotel depois de tentar inutilmente ganhar na Loteria Mineira.
Uma vidente disse a ela: para você ser feliz e encontrar o seu príncipe encantado terá que sofrer mais do que a Gata Borralheira, porque sua madrasta será a própria vida.”
Trecho de Hilda Furacão, no qual Roberto Drummond levanta hipóteses sobre o motivo que levou Hilda a se tornar prostituta
Em 1963: Rua destinada a atacadistas por estar próxima à estação de trem e ao mercado, projetados na construção de BH, tinha ares de região portuária, o que contribuiu para a fama de zona boêmia
Em 2016: Glamour dos tempos em que era frequentada pelos barões do café deu espaço a prédios degradados que abrigam hotéis de prostituição e lojas destinadas ao comércio popular
Esquina de gerações
É a boemia a guia mestra para entender o passado e o presente da Rua dos Guaicurus, no Hipercentro de Belo Horizonte. Ela está na origem, marca a história e alimenta o imaginário de quem a frequenta e até daqueles que nunca pisaram nos quatro quarteirões entre as ruas da Bahia e Curitiba. Os prédios de quatro andares em estilo art déco e eclético, ocupados por hotéis de prostituição, barbearias, lanchonetes e comércio popular, remetem ao início da ocupação da capital. E persistem nos tempos de hoje com visitação superlativa. Todo mês, mais de 1 milhão de homens frequentam os quartos, cinemas e cabines eróticas da Guaicurus. A estimativa é da Associação dos Amigos da Rua Guaicurus (AARG), que reúne donos de hotéis da região.
Muito antes de Hilda Maia Valentim, prostituta que inspirou o escritor Roberto Drummond a escrever o romance Hilda Furacão, pisar na Rua Guaicurus nos anos 1960, a região já era conhecida como o meretrício da nova capital. No projeto original de Aarão Reis, o comércio da cidade ficava concentrado ali, entre o mercado (hoje rodoviária) e a estação de trem (Praça da Estação). Galpões e lojas dos grandes atacadistas e varejistas da cidade eram encontrados nas imediações da Guaicurus, assim como uma embrionária área industrial. Em bairros próximos, como Lagoinha, morava a população de trabalhadores. “Tudo isso conferiu uma característica boêmia de porto, com muita gente que não era da cidade, e acabou formando o meretrício”, explica a historiadora Michele Arroyo, presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).
O glamour dos tempos em que homens da sociedade e coronéis frequentavam o lugar já não existe mais. Mas passam anos, passam décadas e o sobe e desce característico dos hotéis da Guaicurus – alguns deles tombados pelo patrimônio municipal – não diminui. Gerações de prostitutas se renovam e resistem à concorrência da internet. “É um ponto turístico sexual. Desde novo, o pai ensina que tem que pegar as mulheres na zona. É a cultura do machismo”, afirma a presidente da Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), Cida Vieira.
PERFIL De acordo com ela, são 3,6 mil mulheres, transexuais e travestis em atividade nos 25 hotéis da Rua Guaicurus e arredores. Há prostitutas de todo tipo: de 18 a 70 anos. Nuas, de lingerie ou fantasias elas ficam em frente aos quartos para atender os clientes. A maioria é de trabalhadores com renda de até dois salários mínimos. Além da prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis – a Aprosmig fornece cerca de 140 camisinhas por semana para cada uma das associadas –, uma das batalhas da entidade é pelos direitos trabalhistas e pela regulamentação da profissão.
“A mulher que está ali não tem benefício nenhum”, afirma Cida, reforçando não faltarem casos de prostitutas que terminam a vida como moradoras de rua. A Aprosmig também tenta conferir um outro ar à Guaicurus, apoiando eventos que retirem o estigma de área violenta. “Estamos fazendo várias atividades na rua, a virada cultural, a virada carnavalesca. Queremos levar mais botecos e festivais para a região para fazer com que as pessoas percam o medo de passar na Guaicurus”, diz.
Fundador da AARG, Ailton Alves de Matos, de 61 anos, herdou o hotel Novo América da tia, que começou a administrá-lo em 1954. “Antigamente, o cliente era recepcionado nos salões e dali ia para os quartos, havia mais romantismo e fetiche. Na década de 1970, passou a ser um atendimento mais rápido”, conta Matos, que diz ter conhecido a lendária Hilda. “Era boa de serviço”, lembra.
Hoje, o mercado do sexo na Guaicurus segue no ritmo da vida contemporânea. “Ficou um negócio ‘fast-sex’. Se o cliente estiver no Centro com 20 a 30 minutos disponíveis, ele oferece R$ 20 à garota, faz o ato sexual em 10 a 15 minutos e está liberado para seguir a vida sem compromisso”, afirma. Ele reconhece que, por causa da concorrência de motéis, internet e celular, hoje há mais mulheres atendendo fora do que na zona. “O que mantém a Guaicurus é a tradição”, afirma Ailton, que defende a preservação da área como patrimônio imaterial de BH. Mas nem a tradição está imune à crise. “O movimento caiu 50%”, ressalta o presidente da AARG, Edson Cruz.
MUDANÇA Projetos para a região sempre existiram, principalmente aqueles que se propunham a “higienizar” a área e tirar a prostituição dos arredores. Em Hilda Furacão, Roberto Drummond cita um deles, a Cidade das Camélias, cujo objetivo era levar a zona para longe do Centro. “Movimentos de mulheres e mães de família não queriam. A Cidade das Camélias foi a solução dada pelas religiosas”, conta Michele.
Atualmente, está em gestação na prefeitura projeto que prevê a Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos-Pedro I/Leste-Oeste, com ações de requalificação em diversas vias incluídas nesse perímetro. De acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, embora a Rua Guaicurus não seja prioridade, conta com algumas ações previstas. Há, por exemplo, a intenção de se criarem galerias comerciais, a melhoria das condições de travessias pelos pedestres. Também está prevista a destinação de recursos para recuperação de imóveis de interesse cultural. O projeto ainda será encaminhado para votação na Câmara Municipal. (Flávia Ayer)
- Reportagem: Flávia Ayer, Fred Bottrel e Luciane Evans
- Vídeos e fotos: Fred Bottrel
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